O sonho de um teto, a realidade do desencanto
Durante grande parte do século XX, a casa própria funcionou como uma pedra angular do pacto social moderno: era a promessa tácita de que, com trabalho, economia e certo tempo, qualquer cidadão poderia acessar um espaço próprio, estável e digno. A propriedade não só simbolizava segurança patrimonial, mas também pertencimento, continuidade e progresso intergeracional. Na Argentina contemporânea, no entanto, esse horizonte se erodiu a ponto de se tornar, para uma grande parte da população jovem, uma quimera.
O presente artigo aborda a questão do acesso à habitação a partir de uma perspectiva estrutural, incorporando variáveis econômicas, sociais e políticas, com um enfoque que utiliza a análise local com um olhar comparado. À luz das transformações do mercado imobiliário, a precarização do trabalho, a dolarização dos ativos e a ineficácia das políticas habitacionais vigentes, a pergunta sobre a casa própria se revela como uma das questões econômicas e político-sociais mais relevantes e menos abordadas da nossa conjuntura.
Radiografia de uma impossibilidade: o acesso bloqueado
Segundo dados do Censo 2022 e estimativas de organizações como CIPPEC e TECHO, menos de 10% dos jovens argentinos entre 25 e 35 anos acessa a uma habitação própria sem herança familiar. O restante vive de aluguel, compartilha residência com outros ou permanece na casa familiar além da adolescência. O problema é duplo: não apenas existe uma lacuna crescente entre rendimentos e preços imobiliários, mas também uma absoluta desconexão entre a realidade laboral juvenil e os requisitos de financiamento tradicionais.
Enquanto os preços das propriedades se expressam historicamente em dólares, os rendimentos médios da juventude se mantêm em pesos, muitas vezes em condições informais ou de microempresas. Essa dualidade gera uma armadilha estrutural: mesmo aqueles que conseguem economizar, o fazem em uma moeda que perde sistematicamente valor frente aos ativos imobiliários. Em termos reais, a propriedade se afasta a cada ano um pouco mais.
O mercado como exclusão: financeirização, especulação e desigualdade
O acesso bloqueado à habitação não pode ser entendido sem analisar os mecanismos globais de financeirização do solo urbano. A transformação da habitação em ativo financeiro produziu uma paradoxo alarmante: quanto mais valor se dá à propriedade como bem de investimento, menos se a considera como direito. Fundos de investimento, plataformas de aluguel temporário e grandes incorporadoras monopolizam o solo urbano nas principais cidades do mundo, e Buenos Aires não foi a exceção.
Essa lógica especulativa impulsa a construção voltada ao "investidor" em vez do "habitante". São construídos apartamentos com fins de aluguel, não habitações pensadas para serem ocupadas por quem realmente precisa delas. O resultado é uma exclusão: há habitações vazias enquanto milhares não conseguem pagar um aluguel, e cresce o índice de habitações ociosas em áreas de alto valor.
Políticas públicas: a omissão e a insuficiência
Nas últimas décadas, a Argentina careceu de uma política habitacional sustentada, integral e voltada para a população jovem. Os créditos hipotecários tradicionais são praticamente inacessíveis: as exigências de rendimentos formais, as taxas elevadas e a ausência de estabilidade macroeconômica conspiram contra qualquer possibilidade de financiamento a longo prazo.
Paralelamente, a oferta de aluguéis se contrai diante da incerteza regulatória, a informalidade prolifera e a qualidade da habitação declina. As políticas voltadas para a construção de habitações sociais também não são suficientes para cobrir a demanda real, muitas vezes estão associadas a lógicas clientelistas ou fragmentadas.
Subjetividade precarizada, futuro bloqueado
A impossibilidade de acessar uma habitação impacta na autonomia vital dos jovens, mas também em sua capacidade de planejamento. A independência é postergada, a formação de projetos familiares é adiada e a ideia mesma de enraizamento se fragmenta. O habitat se torna uma variável instável, incerta, temporária. Como construir um projeto de vida sem um espaço para habitá-lo?
Além disso, o fenômeno reproduz e aprofunda desigualdades estruturais. Aqueles que recebem uma herança ou ajuda familiar conseguem entrar no mercado; quem não recebe, fica preso em um ciclo de aluguéis crescentes, mudanças constantes e vulnerabilidade habitacional. A meritocracia do esforço perde sentido quando o acesso a um bem básico depende de capitais prévios e não das próprias capacidades.
Alternativas possíveis: repensar o direito de habitar
Diversas experiências internacionais oferecem marcos alternativos ao paradigma da propriedade individual como única forma de acesso à habitação. Cooperativas habitacionais no Uruguai e na Dinamarca, modelos de aluguel social na Áustria, ou esquemas de "aluguel com opção de compra" subsidiados pelo Estado nos Países Baixos, mostram que outras formas de habitar são possíveis se existir vontade política e planejamento urbano a longo prazo.
Na Argentina, algumas experiências cooperativas, de autogestão ou de urbanismo participativo resistem desde a periferia do sistema. No entanto, sem um marco regulatório robusto, financiamento público estável e uma visão de Estado que coloque a habitação no centro do debate, essas alternativas continuarão sendo marginais.
O direito de imaginar um futuro
O acesso à habitação própria é muito mais do que uma questão econômica. É um vetor central na construção de cidadania plena, na possibilidade de projetar, de planejar, de fincar raízes. Quando o habitat se torna um bem de luxo, o futuro se torna um território alheio.
É urgente restituir a habitação ao lugar que lhe corresponde: um direito, não um privilégio. E para isso se requer muito mais do que vontade individual: é necessária uma agenda pública, um planejamento urbano inteligente e uma decisão coletiva de deixar de naturalizar o inaceitável. Porque sem um lugar próprio, também se perde a possibilidade de imaginar um futuro comum.
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