Há 23 dias - economia-e-financas

Quando flutuar é afundar: uma reflexão sobre as causas da economia bimonetária argentina e suas implicações na formulação de políticas

Por Marcos Sami

Quando flutuar é afundar: uma reflexão sobre as causas da economia bimonetária argentina e suas implicações na formulação de políticas

Não é surpresa para ninguém o papel chave que o dólar estadunidense desempenha na economia argentina, especialmente na mente do cidadão argentino. Este último está constantemente atento à cotação da moeda norte-americana, e isso acontece por uma razão simples: A Argentina é uma economia bimonetária, “dolarizada de fato”.

Se alguém consultar qualquer manual básico de macroeconomia ou finanças, a primeira coisa que se estabelece ao falar de dinheiro são as três funções essenciais que toda moeda deve cumprir: meio de troca, unidade de conta e reserva de valor.

A história econômica argentina recente —e não tão recente— demonstra que, salvo em breves períodos de estabilidade, o peso argentino não cumpre adequadamente com duas dessas três funções. Em particular, falha como reserva de valor e como unidade de conta. Pelo contrário, a única função que mantém parcialmente é a de meio de troca, e isso só porque o Estado impõe seu uso como moeda de curso forçado, ou seja, aceito obrigatoriamente nas transações internas, dificultando o uso transacional de outras divisas.

Se analisarmos a capacidade do peso argentino para armazenar valor e, portanto, gerar confiança entre residentes e não residentes, fica evidente por que os agentes econômicos fogem dessa moeda. Ao tentar avaliar seu desempenho, surge um primeiro problema: a falta de medições e estatísticas confiáveis em relação à inflação durante o período 2007–2016.

Nesses anos, o Instituto Nacional de Estatística e Censos (INDEC) foi intervenido pelo Poder Executivo, que incorporou funcionários do Ministério da Economia dentro do organismo. Isso não só retirou autonomia técnica, dando ao governo a possibilidade de adulterar metodologias e dados, mas também eliminou durante uma década a capacidade dos agentes econômicos de analisar estatísticas confiáveis sobre atividade, emprego, pobreza e preços. Em outras palavras, o sistema econômico perdeu completamente sua bússola e, portanto, seu rumo.

Falsificar estatísticas nunca é grátis, especialmente em termos de credibilidade e reputação. A medição do nível de preços é um dos pilares de toda economia moderna, pois constitui a referência chave para:

  • - a formação de expectativas dos agentes,

  • - a medição da pobreza e do poder aquisitivo,

  • - a negociação de salários e contratos diversos (causando um encurtamento de prazos nestes últimos)

  • - as decisões de consumo, poupança e investimento.

A poupança é o combustível que a investimento precisa, e esta última é o motor do crescimento liderado por investimento em todos os países do mundo. É a investimento que impulsiona aumentos de produtividade, gera novos postos de trabalho e melhores salários.

Para que esse processo virtuoso de crescimento se materialize, é essencial um ambiente macroeconômico estável que forneça confiança e previsibilidade. Só assim é possível estimar com precisão os custos e rendimentos de um investimento, com base em estatísticas chave como o custo de capital e a taxa de juros real. O capital sempre se dirige para onde obtém a melhor rentabilidade ajustada ao risco, e o contexto argentino desde 2003 até hoje não fez mais do que aumentar a insegurança e o ceticismo dos investidores, gerando falta de crédito e taxas abissais, tanto para o soberano quanto para os privados.

Não deveria surpreender, então, que a economia argentina, carente de estabilidade e credibilidade, esteja profundamente descapitalizada, com um produto per capita estagnado desde 2011. Sem preços nem dados confiáveis, uma economia deixa de alocar recursos de forma eficiente e destrói confiança: o insumo mais escasso da economia argentina.

A tudo isso, convém lembrar o papel fundamental dos preços como mecanismos de coordenação intertemporal e de transmissão de informação entre os agentes econômicos, responsáveis por alocar recursos escassos de forma eficiente em toda economia de mercado que aspire a ser bem-sucedida. Salvo durante planos de estabilização que utilizam âncoras nominais, existe consenso na literatura sobre a importância de que os preços sejam expressos livremente.

Se deixarmos para trás esta etapa sombria e tomarmos o período janeiro de 2017–setembro de 2025, ou seja, desde a normalização do INDEC até o presente, a inflação acumulada medida pelo Índice de Preços ao Consumidor (IPC) alcançou aproximadamente 9.280% (INDEC, nível geral do IPC, base 2016=100). Isso mostra, de maneira inequívoca, a destruição patrimonial que teria sofrido uma pessoa ou empresa que tivesse mantido uma posição líquida em pesos em seu ativo.

Frente a semelhante perda de poder aquisitivo, a resposta racional dos agentes econômicos foi refugiar-se em uma moeda que preservasse seu valor: o dólar estadunidense. Aqui emerge o fenômeno central da economia argentina e que a diferencia de outras economias emergentes: o bimonetarismo. O dólar, que em outras partes do mundo é utilizado meramente para operações de comércio exterior, passou a cumprir as funções que o peso deixou vagas. Os preços de bens duráveis, imóveis e aluguéis estão medidos em dólares, fenômeno que não ocorre em outras economias em desenvolvimento da região.

Esse processo não é a resposta a uma preferência cultural, como costuma-se afirmar, mas uma reação racional diante de anos de crise e desestabilização macroeconômica. A raiz deste problema está em um dos males mais persistentes da economia argentina: o déficit fiscal recorrente e seu financiamento através da emissão monetária. Esse fenômeno, típico de um regime de dominância fiscal, destrói completamente a moeda. Mesmo quando não houve emissão direta —como durante a conversibilidade—, o financiamento via dívida em mercados internacionais ou com organismos multilaterais levou o estoque de dívida a uma trajetória não sustentável, carecendo de um plano para gerar a capacidade de pagamento necessária para cumprir tais compromissos, chegando em 2001 com um déficit fiscal financeiro de 3,2 pontos do produto e com uma tendência ascendente.

Quando os agentes percebem que o Estado manipula os dados, muda as regras e erosiona o valor da moeda, buscam refugiar-se em um ativo exógeno que não dependa diretamente da política doméstica. Assim, o dólar se torna a unidade de conta de fato e a reserva de valor dominante, enquanto o peso fica relegado à sua função de meio de troca imposto por lei.

Essa estrutura dual gera consequências profundas:

  • - Enfraquece a política monetária: o Banco Central emite uma moeda que ninguém deseja, da qual todos se desfazem assim que a recebem.

  • - Enfraquece o sistema financeiro: os dólares comprados não são canalizados para o crédito produtivo local, pois ficam fora do sistema por medo, desconfiança e restrições regulatórias.

  • - Acentua a vulnerabilidade macroeconômica: qualquer choque político ou de credibilidade se traduz imediatamente em demanda de dólares, pressão cambial e maior inflação.

O bimonetarismo argentino não é um fenômeno cultural nem psicológico, mas o resultado lógico de décadas de instabilidade, inflação crônica e destruição institucional. Uma moeda nacional não se impõe por decreto: ganha-se com credibilidade. Enquanto o Estado não conseguir reconstruí-la —através de disciplina fiscal e monetária, estabilidade macroeconômica, transparência estatística e desenvolvimento institucional—, a sociedade argentina continuará operando com duas moedas.


O tipo de câmbio como variável nominal dominante

A pergunta então é: como muda uma economia que se rege com duas moedas? As políticas devem ser as mesmas?
Dado que o dólar cumpre funções de unidade de conta e reserva de valor, o tipo de câmbio se torna o principal determinante do nível de preços. Nesse contexto, as desvalorizações se transferem rapidamente aos preços internos por meio do efeito conhecido como transmissão da taxa de câmbio, mesmo sob situações de restrição monetária. Por isso, controlar a variável nominal que mais influencia a inflação —o tipo de câmbio— é fundamental para alcançar a estabilidade necessária para crescer e começar a se desenvolver.

As três ferramentas tradicionais utilizadas pelos formuladores de políticas são o controle dos agregados monetários, a taxa de juros e o tipo de câmbio. Em uma economia onde a moeda doméstica não é um veículo confiável de poupança nem de preços, o canal de transmissão monetário se torna mais fraco do que em outras economias. O Banco Central pode restringir a base monetária e/ou aumentar a taxa de juros, mas se o tipo de câmbio se descontrola —e o dólar continua sendo a unidade de conta—, as expectativas inflacionárias se desancoram e a política perde grande parte de sua efetividade. Ou seja, nem mesmo a restrição monetária, que acarreta grandes custos em termos de produto e atividade devido ao deterioramento do consumo e do investimento, garante a estabilidade de uma economia bimonetária.
Sucumbe diante de cenários de estresse apenas por continuar com a mesma ideia de sempre: a flutuação (seja livre ou administrada).


A flutuação como ótimo teórico, não prático

O que em teoria é o ótimo —uma flutuação livre ou entre bandas— pode ser desestabilizador em economias como a argentina. A volatilidade cambial se traduz em inflação, deteriora expectativas e erosiona a credibilidade dos programas econômicos. Em um país com elevada polarização política, os episódios pré-eleitorais que acarretam o famoso hedging pré-eleitoral, induzindo situações de estresse financeiro e de câmbio, disparam a demanda de dólares mesmo sob condições monetárias restritivas. Em esquemas de flutuação administrada, isso gera um custo duplo: perda de reservas e queda da atividade econômica (ou da taxa de crescimento da mesma), além do sinal que se envia ao mercado de estar constantemente muito perto —ou até mesmo sobre— a banda cambial.

Uma âncora cambial é necessária, mas sua credibilidade depende da âncora monetária. Com emissão de dinheiro, não se pode sustentar o tipo de câmbio dadas as reservas, já que cada vez haverá mais pesos disponíveis para comprar a mesma quantidade de dólares, o que o torna insustentável. Da mesma forma, esta âncora monetária depende de que o fisco respeite sua restrição orçamentária intertemporal e não recorra à emissão, que —dada a incapacidade da Argentina de acessar os mercados internacionais de crédito— é sua única fonte de financiamento.
Com isso, fica claro que a âncora cambial necessária para a estabilidade é tanto crível quanto sustentável se e somente se o programa econômico contar com as outras duas âncoras, as quais a dotam de consistência teórica.

Além disso, também é importante considerar o impacto que pode ter uma devaluação brusca, causada por pânico financeiro e/ou uma reversão súbita dos fluxos de capitais (paradas súbitas) sobre a sustentabilidade fiscal. Deve-se ter em mente que a Argentina, nas raras ocasiões em que pode colocar dívida nos mercados internacionais, o faz, na maioria sob legislação e moeda estrangeira, sendo os títulos dólar forte os que têm maior aceitação entre os investidores. Estes últimos têm como moeda de denominação e pagamento o dólar estadunidense, acreditando os famosos dólares cable ou contado com liquidação nas comitentes de seus credores. Isso produz um desalinhamento cambial entre ativos e passivos para o tesouro, já que quase toda sua arrecadação é em moeda doméstica, mas deve enfrentar serviços de dívida (tanto juros quanto principal) em moeda forte. Tal situação faz com que o tesouro precise, em caso de uma forte devaluação, um maior resultado primário em pesos para enfrentar tais compromissos.


Conclusão: flutuar em uma economia bimonetária é afundar

Fica claro, então, que a flutuação pode ser o ótimo teórico, mas não o prático: enquanto o dólar continuar sendo a unidade de conta, a Argentina não pode —nem deve— flutuar. Nessas condições, flutuar significa afundar.

Exemplos como Israel nos anos noventa mostram que um país pode passar de um esquema fixo para um flexível apenas quando o dólar deixa de ser unidade de conta, ou seja, quando os preços e as expectativas se estabilizam.
O Chile também oferece um caso ilustrativo: avançou gradualmente de um sistema de bandas ampliadas
À medida que se aproxima a uma flutuação livre, mas o fez em um contexto onde a moeda local nunca perdeu seu papel de unidade de conta. Diante desse tipo de situação, um regime cambial mais apropriado para uma economia com as características mencionadas seria a adoção de um crawling peg. Este esquema de pequenas depreciações pré-anunciadas tem como objetivo evitar a sobrevalorização da moeda, evitando a volatilidade nominal que tantos efeitos adversos pode trazer. Esse ritmo de depreciação deve ser ajustado à medida que a inflação converge para o ritmo de depreciação, sendo gradualmente reduzido. Economias como a argentina enfrentam o desafio de reconstruir primeiro a confiança em sua própria moeda antes de poder liberalizar seu câmbio. A estabilidade nominal não é um luxo nem uma obsessão: é a condição prévia para qualquer desenvolvimento sustentável.

Deseja validar este artigo?

Ao validar, você está certificando que a informação publicada está correta, nos ajudando a combater a desinformação.

Validado por 0 usuários
Marcos Sami

Marcos Sami

Visualizações: 44

Comentários

Podemos te ajudar?