Não é nenhuma surpresa o papel fundamental que o dólar dos Estados Unidos desempenha na economia argentina, e, especialmente, na mente do cidadão argentino. Este último está constantemente atento à cotação da moeda norte-americana, e isso ocorre por uma razão simples: A Argentina é uma economia bimonetária, “dolarizada de fato”.
Se alguém consultar qualquer manual básico de macroeconomia ou finanças, a primeira coisa que é estabelecida ao falar de dinheiro são as três funções essenciais que toda moeda deveria cumprir: meio de troca, unidade de conta e reserva de valor.
A história econômica argentina recente — e não tão recente — demonstra que, exceto em breves períodos de estabilidade, o peso argentino não cumpre adequadamente com duas dessas três funções. Em particular, falha como reserva de valor e como unidade de conta. Por outro lado, a única função que mantém parcialmente é a de meio de troca, e isso acontece apenas porque o Estado impõe seu uso como moeda de curso forçado, ou seja, de aceitação obrigatória nas transações internas, dificultando o uso transacional de outras moedas.
Quando analisamos a capacidade do peso argentino de armazenar valor e, por conseguinte, gerar confiança entre residentes e não residentes, fica evidente por que os agentes econômicos fogem dessa moeda. Ao tentar avaliar seu desempenho, surge um primeiro problema: a falta de medições e estatísticas confiáveis em relação à inflação durante o período 2007–2016.
Durante esses anos, o Instituto Nacional de Estatística e Censos (INDEC) foi intervenido pelo Poder Executivo, que incorporou funcionários do Ministério da Economia dentro do órgão. Isso não apenas retirou sua autonomia técnica, dando ao governo a possibilidade de adulterar metodologias e dados, mas também eliminou durante uma década a capacidade dos agentes econômicos de analisar estatísticas confiáveis sobre atividade, emprego, pobreza e preços. Em outras palavras, o sistema econômico perdeu completamente sua bússola e, por conseguinte, seu rumo.
Falsificar estatísticas nunca é grátis, especialmente em termos de credibilidade e reputação. A medição do nível de preços é um dos pilares de toda economia moderna, já que constitui a referência chave para:
-a formação de expectativas dos agentes,
-a medição da pobreza e do poder aquisitivo,
-a negociação de salários e diferentes contratos (causando um encurtamento de prazos nesses últimos)
-as decisões de consumo, poupança e investimento.
A poupança é o combustível necessário para o investimento, e este último é o motor do crescimento liderado por investimentos em todos os países do mundo. É o investimento que impulsiona aumentos de produtividade, gera novos postos de trabalho e melhores salários.
Para que esse processo virtuoso de crescimento se materialize, é essencial um ambiente macroeconômico estável que ofereça confiança e previsibilidade. Só assim é possível estimar com precisão os custos e retornos de um investimento, a partir de estatísticas chave como o custo de capital e a taxa de juros real. O capital sempre é direcionado para onde obtém a melhor rentabilidade ajustada pelo risco, e o contexto argentino desde 2003 até hoje não fez mais do que aumentar a insegurança e o ceticismo dos investidores, gerando falta de crédito e taxas abissais, tanto para o soberano quanto para os privados.
Não deveria surpreender, então, que a economia argentina, carente de estabilidade e credibilidade, esteja profundamente descapitalizada, com um produto per capita estagnado desde 2011. Sem preços ou dados confiáveis, uma economia deixa de alocar recursos eficientemente e destrói a confiança: o insumo mais escasso da economia argentina.
Além disso, convém lembrar o papel fundamental dos preços como mecanismos de coordenação intertemporal e de transmissão de informações entre os agentes econômicos, responsáveis por alocar recursos escassos eficientemente em toda economia de mercado que aspire a ser bem-sucedida. Exceto durante planos de estabilização que utilizem âncoras nominais, há consenso na literatura sobre a importância de que os preços sejam expressos livremente.
Se deixarmos essa fase obscura para trás e tomarmos o período janeiro de 2017–setembro de 2025, ou seja, desde a normalização do INDEC até o presente, a inflação acumulada medida pelo Índice de Preços ao Consumidor (IPC) alcançou aproximadamente 9.280% (INDEC, IPC nível geral, base 2016=100). Isso mostra, de maneira inequívoca, a destruição patrimonial que uma pessoa ou empresa que tivesse mantido uma posição líquida em pesos em seu ativo teria sofrido.
Frente a semelhante perda de poder aquisitivo, a resposta racional dos agentes econômicos foi refugiar-se em uma moeda que preservasse seu valor: o dólar dos Estados Unidos. Aqui emerge o fenômeno central da economia argentina, e que a distingue de outras economias emergentes: o bimonetarismo. O dólar, que em outras partes do mundo é utilizado meramente para operações de comércio exterior, passou a cumprir as funções que o peso deixou vacantes. Os preços de bens duráveis, imóveis e aluguéis estão medidos em dólares, fenômeno que não ocorre em outras economias em desenvolvimento da região.
Esse processo não é a resposta a uma preferência cultural, como costuma ser afirmado, mas uma reação racional frente a anos de crise e desestabilização macroeconômica. A raiz desse problema está em um dos males mais persistentes da economia argentina: o déficit fiscal recorrente e seu financiamento por meio da emissão monetária. Este fenômeno, típico de um regime de dominância fiscal, destrói completamente a moeda. Mesmo quando não houve emissão direta — como durante a convertibilidade —, o financiamento via dívida em mercados internacionais ou com organismos multilaterais levou ao estoque de dívida a uma trajetória insustentável, sem um plano para gerar a capacidade de pagamento necessária para cumprir tais compromissos, chegando a 2001 com um déficit fiscal financeiro de 3,2 pontos do produto e com uma tendência ascendente.
Quando os agentes percebem que o Estado manipula os dados, muda as regras e erosiona o valor da moeda, buscam refugiar-se em um ativo exógeno que não dependa diretamente da política doméstica. Assim, o dólar se torna a unidade de conta de fato e a reserva de valor dominante, enquanto o peso é relegado à sua função de meio de troca imposto por lei.
Essa estrutura dual gera consequências profundas:
-Desstrengthens monetary policy: o Banco Central emite uma moeda que ninguém deseja, da qual todo mundo se desfaz assim que a recebe.
-Desstrengthens financial system: os dólares comprados não são canalizados para o crédito produtivo local, pois ficam fora do sistema por medo, desconfiança e restrições regulatórias.
-Acentua a vulnerabilidade macroeconômica: qualquer choque político ou de credibilidade se traduz imediatamente em demanda por dólares, pressão cambial e maior inflação.
O bimonetarismo argentino não é um fenômeno cultural ou psicológico, mas o resultado lógico de décadas de instabilidade, inflação crônica e destruição institucional. Uma moeda nacional não se impõe por decreto: ganha-se com credibilidade. Enquanto o Estado não conseguir reconstruí-la — através de disciplina fiscal e monetária, estabilidade macroeconômica, transparência estatística e desenvolvimento institucional —, a sociedade argentina continuará operando com duas moedas.
O câmbio como variável nominal dominante
A pergunta então é: como muda uma economia que se rege com duas moedas? As políticas devem ser as mesmas?
Dado que o dólar cumpre funções de unidade de conta e reserva de valor, o câmbio se torna o principal determinante do nível de preços. Nesse contexto, as desvalorizações são rapidamente repassadas aos preços internos por meio do efeito conhecido como traslado de câmbio, mesmo sob esquemas de aperto monetário. Por isso, controlar a variável nominal que mais incide na inflação — o câmbio — é fundamental para alcançar a estabilidade necessária para crescer e começar a se desenvolver.
As três ferramentas tradicionais de estabilização nominal são o controle dos agregados monetários, a taxa de juros e o câmbio. Em uma economia onde a moeda doméstica não é um veículo confiável de poupança nem de preços, o canal de transmissão monetária se torna mais fraco do que em outras economias. O Banco Central pode restringir a base monetária e/ou aumentar a taxa de juros, mas se o câmbio se descontrola — e o dólar continua sendo a unidade de conta —, as expectativas inflacionárias se desancoram e a política perde grande parte de sua efetividade. Ou seja, nem mesmo o aperto monetário, que implica grandes custos em termos de produto e atividade devido ao deterioro do consumo e do investimento, garante a estabilidade de uma economia bimonetária.
Ela sucumbe diante de cenários de distresse somente por continuar com a mesma ideia de sempre: a flutuação (seja livre ou administrada).
A flutuação como ótimo teórico, não prático
O que na teoria é o ótimo — uma flutuação livre ou entre bandas — pode ser desestabilizador em economias como a argentina. A volatilidade cambial se traduz em inflação, deteriora expectativas e erosiona a credibilidade dos programas econômicos. Em um país com elevada polarização política, os episódios pré-eleitorais que levam ao famoso hedging pré-eleitoral, induzindo situações de estresse cambial e financeiro, disparam a demanda por dólares mesmo sob condições monetárias restritivas. Em esquemas de flutuação administrada, isso gera um custo duplo: perda de reservas e queda da atividade econômica (ou na taxa de crescimento da mesma), além do sinal que se envia ao mercado de estar constantemente muito perto — ou até mesmo sobre — a banda cambial.
Uma âncora cambial é necessária, mas sua credibilidade depende da âncora monetária. Com emissão de dinheiro, não se pode sustentar o câmbio dadas as reservas, uma vez que cada vez haverá mais pesos disponíveis para comprar a mesma quantidade de dólares, tornando-o insustentável. Além disso, esta âncora monetária depende do fisco respeitar sua restrição orçamentária intertemporal e não recorrer à emissão, que — dada a incapacidade da Argentina de acessar os mercados internacionais de crédito — é sua única fonte de financiamento.
Com isso, fica claro que a âncora cambial necessária para a estabilidade é tanto crível quanto sustentável se e somente se o programa econômico contar com as outras duas âncoras, que lhe conferem consistência teórica.
Além disso, também é importante considerar o impacto que uma desvalorização brusca, causada por pânico financeiro e/ou uma reversão súbita dos fluxos de capitais (sudden stops) pode ter sobre a sustentabilidade fiscal. Deve-se ter em mente que a Argentina, nas raras ocasiões em que consegue colocar dívida nos mercados internacionais, o faz, na maioria sob legislação e moeda estrangeira, sendo os títulos hard dollar os que têm maior aceitação entre os investidores. Estes últimos têm como moeda de denominação e pagamento o dólar estadunidense, acreditando os famosos dólares cable ou contado com liquidação nas comitentes de seus credores. Isso produz um descalce cambial entre ativos e passivos para o tesouro, uma vez que quase toda sua arrecadação é em moeda doméstica, mas deve enfrentar serviços de dívida (tanto juros quanto principal) em moeda dura. Tal situação faz com que o tesouro necessite, em caso de uma desvalorização forte, de um maior resultado primário em pesos para cumprir tais compromissos.
Conclusão: flutuar em uma economia bimonetária é afundar
Está claro, então, que a flutuação pode ser o ótimo teórico, mas não o prático: enquanto o dólar continuar sendo unidade de conta, a Argentina não pode — nem deve — flutuar. Nessas condições, flutuar significa afundar.
Exemplos como o de Israel nos anos noventa mostram que um país pode passar de um esquema fixo para um flexível apenas quando o dólar deixa de ser unidade de conta, ou seja, quando os preços e as expectativas se estabilizam.
O Chile também oferece um caso ilustrativo: avançou gradualmente de um sistema de bandas ampliatórias para a flutuação livre, mas fez isso em um contexto onde a moeda local nunca perdeu seu papel de unidade de conta. Frente a esse tipo de situações, um regime cambial mais adequado para uma economia com as mencionadas características seria a adoção de um crawling peg. Este esquema de pequenas depreciações pré-anunciadas tem como objetivo evitar a sobrevalorização da moeda, evitando a volatilidade nominal que tantos efeitos adversos pode trazer. Esse ritmo de depreciação deve ser ajustado à medida que a inflação converja para o ritmo de depreciação, sendo gradualmente reduzido. Economias como a argentina enfrentam o desafio de reconstruir primeiro a confiança em sua própria moeda antes de poder liberalizar seu câmbio. A estabilidade nominal não é um luxo nem uma obsessão: é a condição prévia para qualquer desenvolvimento sustentável.

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