04/09/2024 - entretenimento-e-bem-estar

Pensar o impensado

Por ethel rosso

Pensar o impensado

Para onde vão os desejos esquecidos?

Raízes, folhagens, raios astrais, cabelos, pêlos da barba, espirais de som: fios de morte, fios de vida, fios de tempo.A trama tece e desfia: irreal o que chamamos vida, irreal o que chamamos morte (Octavio Paz, 1983).


Aqui falaremos da relação entre o que é e o que há-de ser, ou das coisas que são e serão ao mesmo tempo. Suponho que em algum momento é possível relacionar o que é com o que é visível e o que ainda não é, mas será, com o que não se vê; no meio, então, ficaríamos com aquela misteriosa "visão do não visível" adquirida por quem está a criar algo, aquela intuição criativa do que está prestes a acontecer ou talvez já tenha acontecido em silêncio. São tantas as expressões que circulam entre nós: "dos labirintos sai-se por cima", "uma volta ao parafuso", "redobrar a aposta", todas elas remetendo para pensar o impensado, sublinhando a urgência de desautomatizar a nossa perceção ordinária das coisas para dar lugar ao novo (por vezes cordialmente convidados a fazê-lo, por vezes violentamente empurrados para ele).

O conhecido e o desconhecido, duas dimensões que se sugerem e com elas uma questão: será possível que possam coexistir, entre si e connosco? Remedios Varo pode ajudar-nos a ensaiar uma tentativa de resposta. A pintora surrealista concebeu tantos universos mágicos como atmosferas repletas de símbolos, e em cada uma das suas obras devem coexistir astros e cientistas, feiticeiras com sonhos e arquétipos, alquimistas que ligam matéria e espírito, magos do consciente e do inconsciente, todos no mesmo sítio. No entanto, e a propósito da questão que nos traz aqui, centrar-nos-emos numa das suas últimas obras, Fenómeno de ingravidez (1963). Nela, a terra deslocou-se do seu eixo e, com ela, as paredes da sala. Tentando equilibrar-se num chão desfasado e sem peso, um astrónomo desorientado tenta manter o pé esquerdo numa dimensão e o pé direito noutra, tal como nós fazemos quando tentamos pensar o impensado, a partir do pensamento.

O fenómeno da ausência de peso, Remedios Varo, 1963

Talvez o que Remedios Varo nos esteja a propor seja que nos entreguemos à perda de equilíbrio. Ou seja, não pensar o impensado em referência ao pensamento, mas dar ao impensado uma identidade própria que escapa a qualquer tipo de referência conhecida. Qual é, então, a potência do impensado? Como dar um nome a essa dimensão que nem sequer pode ser definida pela negação de outra coisa? Apesar de tantas questões, o que importa aqui é que a leveza da obra é algo que acontece, ou melhor, algo que já está a acontecer para além das nossas explicações desesperadas e da nossa ânsia de equilíbrio. O invisível está a acontecer aqui e ali, mesmo que seja invisível. Afinal, não é isso que diz a frase que todos repetimos: "a magia existe onde escolhemos encontrá-la"? O invisível já está a acontecer e cabe-nos a nós ignorá-lo ou prestar-lhe atenção suficiente para que o invisível possa ser um veículo e até precipitar novos e desconhecidos devires. Ver ou não ver a quota-parte de magia é, afinal, a escolha mais mundana e real de todas: de que outra forma as crianças inventariam os seus universos? Porque é que brincar não seria suficientemente sério para lhe dar a entidade de um acontecimento? Porque é que os nossos sonhos mais bizarros e dignos de contos de fadas seriam tão estranhos que não poderiam ser considerados reais?

Vivemos com o invisível a toda a hora e é a partir daí que intuímos possibilidades. Remedios Varo vai mais longe, não só por ver mais do que aquilo que se vê, mas também por explorar e dar vida no seu trabalho aos universos de possibilidades escondidos no invisível. Dito isto, acontece que estes universos são por vezes ignorados no automatismo rígido do que vemos; pensar o impensado implica mergulhar num espaço e num tempo diferentes, como quem grita eureka! quando algo se ilumina para compreender o que não compreende, ou como quem sente um palpite misterioso que lhe diz para onde ir. É a partir deste lugar que nos inspiramos ou descobrimos o sentido oculto das coisas: acariciar as texturas do invisível depende da forma como escolhemos alimentar a nossa intuição, sabendo que o que está prestes a ser vislumbrado já está a acontecer em nós e para nós a toda a hora, em todo o lado, sem envelhecer e sem se diluir.

Visível e invisível, um dentro do outro, dobrados um no outro e por vezes indivisíveis. É preciso olhar para aquilo que emerge da matéria sem ser material: mesmo um móvel no canto da casa tem a sua quota-parte de invisibilidade, porque apesar dos seus contornos definidos de madeira, nele se alojam memórias, registos de anedotas, desejos de o vender ou de o colocar noutro lugar, significados e sentidos invisíveis sobre ele, mas nele. Por vezes, não são necessários óculos ou um candeeiro para ver melhor, basta ver para além do que se vê: o invisível é a atmosfera de uma época ou de uma interação com alguém, a cor invisível de cada momento, a "forma de dar forma" à vida sem linhas nem contornos. Os nossos medos e os nossos desejos, o que recordamos e o que esquecemos, o futuro e a possibilidade, tudo isso flutua num universo invisível que coexiste permanentemente com o que podemos ver. É nesse universo que se guarda o impensável, é aí que coexistem as mais remotas possibilidades e é também nesse lugar que podemos surpreender os outros, mas também a nós próprios.

Mais uma coisa

Ver para além do que se vê, encontrar os desejos esquecidos ou pensar o impensado: tudo isso se encontra onde se ressoa e pode-se ressoar com muitas coisas, mas sobretudo com símbolos. São os símbolos que materializam o invisível e o representam, para que possamos perceber o que não pode ser visto. Nesse lugar, a partir da abertura a essa imagem ou símbolo, podemos ser transformados e transportados para sensações distantes, intuições, valores, ideias perdidas. Os símbolos encontram-nos e produzem ressonância, porque afinal não somos mais do que antenas que captam sinais do meio ambiente. Pensar o impensado não significaria, portanto, ter a mais original das ideias, mas sim embarcar na aventura de encontrar e produzir ressonância, prestando especial atenção a essa coisa invisível que está sempre connosco, para lhe dar forma. Na minha opinião, há três questões por responder: Primeiro, a que símbolos estamos habituados? Em segundo lugar, de que forma podemos desafiar esse hábito, acedendo a símbolos novos e diferentes? Em terceiro e último lugar, até que ponto estamos abertos a isso?


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ethel rosso

ethel rosso

Psicóloga (MN 81203). Buenos Aires.
Eu gosto de fazer ioga, ler e passear muito. Às vezes escrevo, porque sou muito curiosa.
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