A Interpretação dos Sonhos ao Longo da História
Estava no apartamento onde vivi na minha infância, mas ao virar encontrei-me em frente ao caixa de um supermercado, que estranhamente tinha o rosto do meu amigo, mas o corpo de um marciano. O que me disse não me lembro; talvez tenha sido um som afogado, como um eco, ou talvez chocou metade da direção que tenho anotada num rascunho da minha mesa de luz. Seja o que for que me tenha dito, agora corro, pois me perseguem umas sombras no meio de um beco escuro que eu acho nunca ter passado na vida consciente, mas sim em algum que outro sonho anterior. Lembrarei tudo quando acorde?
Os sonhos são estranhos. Partamos da base de que no ano 332 a.C., Alexandre Magno sonhou com um sátiro dançando sobre um escudo. E isso que significa? Bem, é por sorte que se trata de Alexandre Magno e estamos na Grécia Antiga, claramente tem um adivinho pessoal. Chama-se Aristandro, e de fato o acompanha em todas as suas viagens. A questão é que nesse momento se encontravam asediando a cidade fenícia de Tiro, e o vidente ocorre este jogo de palavras: satyros (sátiro), pode se dividir em dois, sa Tyros, que significa "Tiro (a cidade que tentavam conquistar) é seu". Com este prognóstico em mente, Alexandre continua a campanha e conquista a cidade. Sonhos como o de Alexandre Magno eram bastante usuais na Antiguidade, cujas escrituras revelam um papel passivo do sonhador, que, qual observador de imagens, recebe mensagens divinas e engenhosas premonições sobre como proceder. A partir desses sonhos foram construídos templos, conquistado civilizações e assassinando pessoas, ou seja, tomavam-se decisões a partir das previsões que exibiam as imagens com as quais se sonhavam, nas quais figuravam símbolos e divindades, tanto bons quanto maus.
Joseph Interprets Pharaoh's Dream 1896–1902. Jacques Joseph Tissot.
Teorias Sobre a Origem e Significado dos Sonhos
Claro, cada quem tinha sua teoria para explicar aquilo que acontecia quando os olhos se cerravam, e desse basto corpo de interpretações possíveis gostaria de destacar duas: a primeira é a de Aristóteles (384-322 a.C.), que afirmava que os sonhos eram causados pela atividade fisiológica dos corpos. A segunda, por sua vez, foi a de Hipócrates (469-399 a.C.), e era tão simples quanto pensar que, durante o dia, a alma recebe imagens, enquanto que à noite, as produz. Hoje podemos falar de onirologia (o estudo científico dos sonhos), psicanálise, e outros discursos, sem deixar de lado, claro, às concepções sobre os sonhos que sustentavam religiões e contextos culturais como o hindu, chinês, babilonio, budista, abrahámico, entre outros. Em poucas palavras: todos temos algo a dizer sobre nossos sonhos. E é que como não dizer nada sobre essas estranhas experiências em que voamos pelo ar e mudamos de palco como por arte de magia? Alguns pensam que nos sonhos podemos visitar os nossos antepassados, outros afirmam que sonhamos em contato com os nossos desejos inconscientes mais profundos, e até há aqueles que tentam explicar aos sonhos da neurobiologia. O certo é que já não se trata de quem tem razão, mas de que história pode nos dar a tranquilidade que precisamos para significar e ficcionar uma explicação possível para essas imagens oníricas que nos visitam e visitamos quando dormimos.
O pesadelo,Henry Fuseli (1781).
Os Sonhos como Elementos Criadores de Realidades
No entanto, além do que significam, quais elementos têm em comum com os de outras pessoas e quais estão sujeitos à experiência exclusivamente pessoal, nossos sonhos podem oferecer-nos elementos mais do que interessantes para criar, e digo "crear" porque os sonhos são, afinal, criações. Criamos uma cena com personagens que podemos conhecer ou não, com um roteiro a seguir ou com situações completamente desconectadas, com mensagens claras ou rebuscadas pistas que apenas lembramos quando acordamos. Um mundo desenha-se quando dormimos e nós, enquanto sonhadores, nos transformamos em demiurgos de realidades-dormidas, tornando-nos artistas inconscientes das obras de teatro mais maravilhosas ou horrorosas, porque sempre há uma quota de ambas. Definitivamente, os sonhos guardam uma potência criadora que escapa a qualquer interpretação para convidar-nos a aprender uma língua muito particular, um que Carl Jung tentou aprender a ler e que artistas como Xul Solar ou Joaquín Torres García pretendiam alfabetizar, uma língua que Erich Fromm definiu como a linguagem do homem universal.
"A linguagem dos sonhos é uma linguagem universal, a linguagem da humanidade. A linguagem dos sonhos pode ensinar-nos algo que hoje, mais do que nunca, precisamos para a vida: nos sonhos podemos transformar-nos em poetas"(Fromm, 1984, p. 112).
A Potência Criadora dos Sonhos na Cultura e nas Artes
Em uma entrevista radial em 1971, Erich Fromm, dentro da série "O que se sabe dos sonhos?", destacou que o que acontece quando sonhamos é que somos livres. Por outras palavras, não temos qualquer tipo de responsabilidade nem fazer como na vigília, não perseguimos nenhum objetivo em particular. "Não precisamos fazer nada, só precisamos ser", afirma Fromm. E que maravilhoso! Somos livres para criar, tudo pode acontecer. Dessa riqueza criativa é que se desprende o fato de que uma "interpretação" não equivale à compreensão da criação sonhada, mas, pelo contrário, a desvitaliza. Compreender um sonho significa aceitar que não podemos "interpretá-lo", mas devemos respeitar a sua linguagem particular, e para aprender isso devemos, em primeira instância, explorá-lo. Trata-se de algo assim como uma hermenêutica do sono, de um navegar na gramática e morfologia próprias daquilo com o que se sonha.
Cartas de panlengua. Xul Solar.
Lugares, pessoas, objetos, sonhos podem conter muitos elementos. Alguns deles podem ser reflexo de nossas memórias e experiências, outros podem ser totalmente novos, e estão os que diretamente misturam elementos conhecidos e desconhecidos. O certo é que os sonhos são uma via ideal para nos conhecermos a nós mesmos, sobretudo nos tempos que correm, onde é normal confundir o auto-conhecimento com a sobre identificação, que só consegue encalhar-nos em classificações exageradamente gerais. O conhecer-se a si mesmo através dos sonhos implica poder compreender as criações que podemos desenvolver adormecidos e a partir delas criar acordados. Sobre nos identificar, atribuir características massivas, comprar o produto do auto-conhecimento que o sistema pretende vender-nos, nada disso funciona como matéria-prima para nenhuma criação original e, o que é mais importante, honesta. Uma excelente recomendação, que no pessoal me dá muito resultado, é escrever aquilo com o que sonhamos imediatamente após acordar. Na verdade, enquanto menos racionalizações melhor, com palavras soltas alcança. Realmente surpreende o número de elementos com os quais pode ser encontrado ao ler sonhos velhos.
"Aquele não conhecido pelo homem ou não pensado, deambula na noite pelo labirinto de seu peito"(Goethe)
Na mitologia dos nativos australianos existe um termo chamado "altjeringa", que em espanhol traduzimos como "O Sonho", e que se entende como "érase uma vez" sagrado, o tempo da criação. Se pensarmos bem, até o sonho mais insulso começa como um "érase uma vez", como um "tempo além do tempo", segundo entendia a mitologia aborigen australiana. Um tempo que escapa as lógicas em que nos movemos quando despertamos, o tempo do sono, tempo para compreender. Em "Humano, demasiado humano", Nietzsche expressa claramente: "O sonho nos devolve ao estádio distante da cultura humana, colocando em nossas mãos as ferramentas para melhor compreender". É no sonho onde falamos uma linguagem extraordinária e universal como propunha Erich Fromm, que a propósito aponta: "o falamos todas as noites" (Fromm, 1971).
As imagens oníricas e as poéticas estão intimamente ligadas. Ambas se suplantam mutuamente ou se complementam em silêncio(Friedrich Hebbel). Extraído de "Suenho e Poesia", trabalho de Otto Rank que apareceu em "A interpretação dos sonhos", de Sigmund Freud, até a sétima edição (1922) e depois foi eliminado junto com outro trabalho, "Suénho e mito", na oitava (1930), por diferenças nunca explicitadas entre os dois co-autores.
Sonho e presentimento. Maria Izquierdo (1947).
Este estranho sonho... O que significa? Por que eu o sonhei? Acho que os seres humanos sempre teremos que lidar com o mistério das causas. Afinal, os sonhos são tão estranhos quanto as obras de arte. Podemos focar-nos em pensar o que eles representam (isto é, decifrar o seu conteúdo, interpretar as suas mensagens) e/ou em que eles apresentam, o que é diferente do primeiro. Perguntar-se o que apresenta o sono é o primeiro passo para compreender, entendendo à compreensão como a integração em um mesmo daquilo que se entende. Só assim se podem levantar questões novas que transcendem a febre pelo "quê significa?", para criar outro tipo de questões que permitam aprender o desafio e diferente linguagem dos sonhos. Pelo menos isso é o que Jung criticava Freud: "Também a imagem onírica manifesta é o sonho mesmo e contém todo o sentido. O que Freud chama fachada do sono é a opacidade do sono, e na verdade isso é uma mera projeção do não-comprender, ou seja, se fala de fachada porque não se conhece o sonho" (Jung, 1934). Apresentação e representação excluem-se a uma à outra? Bem, isso depende de quem está olhando. O que essas pessoas propõem, no entanto, é poder explorar o que se apresenta antes de querer interpretar suas mensagens. Na verdade, há aqueles que levaram este problema ainda mais longe, como o reconhecido pintor René Magritte.
A representação proibida (1937). René Magritte.
O que está me apresentando este sonho, o que está se manifestando nele? De que maneira particular se organizam os elementos que aqui se sonham?, e outras questões que só podem ser respondidas na linguagem dos sonantes, onde todos somos livres e poetas dispostos a criar. Os sonhos são um mundo com objetos de mil mundos, miméticos e poiéticos. Diante da falta de respostas absolutas sobre aquilo com o que sonhamos, uma boa resposta pode ser outra pergunta: o que podemos criar a partir de um sonho? Talvez a partir dessas criações possamos nos relacionar com a humanidade, trazendo uma quota de poesia e sensibilidade ao modo intelectual e conceitual com o qual, sem nos aperceber, insistimos em enfrentá-la. Finalizo e repito, escrever o que sonhamos é uma grande forma de nos conhecer.
Referências
Jung, C. (1934). A prática da psicoterapia.
Fromm, E. (1971). O amor à vida. Paidós.
Marinelli, L. Mayer, A. (2011). Sonhar com Freud. O cuenco de prata.
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