04/03/2025 - politica-e-sociedade

Um comentário sobre a crise da democracia liberal

Por marcos pascis

Um comentário sobre a crise da democracia liberal

Vários fatos podem nos fazer acreditar que a democracia liberal está em crise, desde o surgimento de lideranças autoritárias que apelam a demandas não atendidas da cidadania, até o afastamento das massas da res publica. Se analisarmos detidamente, muitos tópicos estão entrelaçados. O afastamento da cidadania do espaço público é fundamental. As ideias, interesses e demandas da cidadania, idealmente, são canalizadas através de partidos políticos, o que poderia levar - e certamente, em muitas ocasiões levou - ao poder a figuras populistas que renegam o establishment.

Colin Crouch caracterizou o período aberto na década de 1970 como “pós-democracia”. Neste, os partidos políticos cedem espaço a elites que se reproduzem internamente, e são guiados por pesquisas e assessores profissionais, financiados por redes de empresas, em busca de atingir o maior número possível de eleitores. Este esvaziamento ideológico representa um afastamento das bases, o que deixa as massas, suas preocupações e interesses - benéficos para elas mesmas ou não - nas mãos de tecnocratas. A crise dos partidos geraria, por inércia própria da própria democracia, alternativas não democráticas. No entanto, visto através de uma teoria elitista da democracia, como a de Joseph Schumpeter, a crise não é tal, uma vez que, a menos que não haja competição e alternância entre as elites no governo, a democracia cumpre sua única função: ser um mecanismo eleitoral de elites. 

Com os pressupostos “schumpeterianos” da democracia elitista, não estaríamos diante de uma crise da democracia liberal, dado que os mecanismos que permitem a variação de elites, mais ou menos frequentemente, permanecem em pé, mesmo diante da presença de discursos populistas. Pode-se observar então que a presença ou não de uma crise da democracia liberal dependerá da teoria democrática com a qual se examina a realidade e se esta considera a presença, ou não, de um bem comum. 

Nas últimas décadas do século XX, os partidos políticos perderam sua marca mobilizadora que souberam ter durante sua “idade de ouro”. Os partidos articulavam a vida política do indivíduo, agrupando-os em coletivos ideológicos com alguma diferenciação entre si e representando-os no Estado, gerando ao mesmo tempo sentimentos de pertencimento sobre um bem comum aspiracional. Esta caracterização da democracia partidária ideal parte da existência de um bem comum que a democracia teria o dever e a capacidade de encontrar, podemos lembrar frases como "com a democracia se come, se cura e se educa". Se se plantea a crise dos partidos, então estaria se planteando uma crise na democracia em si, uma vez que as preferências se canalizariam através de alternativas menos democráticas ou mesmo autoritárias. Na década de 1970 tanto os partidos políticos quanto o mundo inteiro sofreram mudanças, iniciando o período “pós-democrático”, segundo Crouch. Os partidos teriam abandonado seus ideais e elementos característicos, tais como uma mobilização de base e um ideário particular, resultando na homogeneidade dos partidos, cujas propostas a efeitos práticos eram similares e se gestavam através de especialistas cada vez mais guiados por pesquisas e com o suporte de firmas privadas, cujo aporte monetário buscava ser retribuído com o partido no poder.  

Os partidos extremistas que renegavam as instituições liberais do ocidente, como os partidos comunistas, começaram a perder atratividade. A tendência centrista dominou o cenário eleitoral, uma vez que poderia atrair mais possíveis eleitores, além de sua base. As ideias de Joseph Overton sobre a condição do político médio como "mero seguidor" das grandes tendências de opinião pública fazem sentido nessa tendência institucional. Mas além disso, as políticas foram afetadas pela hiperglobalização, uma vez que, segundo Dani Rodrik, esta atua como um “colete de forças” para a soberania nacional. Instituições supranacionais condicionam as possíveis decisões democráticas, o que acabaria minando o poder soberano do Estado sobre seu território, principalmente em política econômica.

Os mecanismos e instituições tradicionais da democracia continuaram em pé: eleições livres, liberdade de pensamento, alternância e competição pelo poder, etc. No entanto, as políticas públicas geradas a partir do Estado teriam começado a ter uma distância das preferências da massa, em busca de políticas voltadas para a maximização dos benefícios das elites políticas e econômicas. Além disso, as administrações aumentaram sua complexidade operacional, sendo imperativa a presença de tecnocratas que realizam políticas públicas com conhecimento especializado, diagnosticando problemas e soluções. O resultado foi que a tendência à afiliação aos partidos caiu, assim como a participação geral nas eleições, demonstrando a perda de identidades coletivas e atomização social, segundo Peter Mair. O ressurgimento nos últimos anos de populismos de direita na Europa - não conto os regimes autoritários de esquerda na América Latina - significaria uma ruptura do “consenso pós-democrático” e a saída em direção a uma alternativa ainda menos democrática, por culpa da falta de instituições que através da participação civil possam expressar as preferências e exercer o poder, além de contê-lo.    

Mas se analisarmos a realidade através da teoria da democracia de Schumpeter, podemos afirmar que não existe uma crise. Se não considerarmos a presença do bem comum como algo existente e alcançável pela democracia, os fenômenos da “pós-democracia” e a presença de alternativas populistas, não são um problema, uma vez que existem mecanismos que garantem a competição entre elites. Graças à facilidade de movimento dos fatores produtivos na globalização, as sociedades cresceram em complexidade. Isso significa que diversas concepções do bem comum coexistem e competem; portanto, a imposição de uma implicaria a submissão das demais, transformando-as em meios para um fim. Eliminar o bem comum e a vontade geral da teoria democrática deixa esta como um instrumento para que os eleitores, a cada certo tempo, escolham as elites que vão governá-los, entendendo melhor que eles seus interesses. Os partidos políticos sob esta teoria distam de ser plataformas de ideias, mas sim agem sob a lógica da empresa privada; são plataformas para ganhar eleições, colocando à disposição do mercado eleitoral elementos para persuadir o indivíduo, como propaganda, promessas, slogans, etc. Por isso existiriam traços homogêneos nos partidos políticos. 

O eleitor, por sua irracionalidade no âmbito público, segundo Schumpeter, só deveria participar da política no momento das eleições, para escolher a elite com seu aparelho tecnocrático. Estes realizarão políticas guiados sob um único interesse próprio: a reeleição. Autores como Pateman, Gutmann e Thompson, que deram um valor intrínseco à democracia, e afirmaram que existia um bem comum alcançável através da participação e da deliberação, criticariam este elemento. Esta falta de participação, para teorias elitistas, resguardaria a liberdade individual, porque os resultados da participação dariam resultados irracionais e negativos para os próprios eleitores que possuem, no âmbito público, capacidades epistêmicas diminuídas. Além disso, a competição entre as elites garantiria outros tipos de liberdade moderna, como a liberdade de imprensa, liberdade política ou liberdade de movimento. No entanto, uma condição imperativa é que as elites estejam contidas e limitadas em suas possibilidades de afetar o indivíduo e o sistema político. Esta contenção repousa na restrição das questões a tratar, como restrições constitucionais sobre propriedade, liberdade e outros direitos básicos; temas que diversas instituições supranacionais, como a ONU, reafirmam em tratados internacionais vinculativos. Além disso, autores como Jason Brennan colocam a esfera de ação do estado em âmbitos delimitados, permitindo que a sociedade civil se ocupe, caso seja mais eficiente, incluindo elementos onde o Estado não tenha a informação necessária, que outros métodos como o mercado podem fornecer. Assim, essa sujeição e limitação externa da política local seria a chave para o bom funcionamento do sistema. 

Os populismos sob esta ótica não representariam uma solução antidemocrática, uma vez que, em última instância, são uma alternativa mais na competição eleitoral e seu discurso antiliberal, antipluralista e intolerante, representaria apenas a colocação no mercado eleitoral de um “pacote de bens eleitorais” por parte de um partido e um membro da elite. Sua chegada ao poder seria totalmente válida. No entanto, existe a possibilidade, segundo Nadia Urbinati, de que o populismo se torne uma mudança de regime, instaurando uma autoritarismo ao modificar a constituição e negar a competição eleitoral das elites. Isso não poderia ocorrer apenas com um líder populista, mas com qualquer governo, independentemente de seu discurso, desde que romper com a institucionalidade gere mais benefícios do que custos. 

Em conclusão, o positivo e o negativo da realidade social dependerá dos fundamentos teóricos da teoria democrática que forem utilizados. A despolitização da vida individual, a perda de identidades coletivas, a pouca participação, a sujeição externa da política local, o governo tecnocrático e das elites autocompostas que zelam por seus interesses particulares, mesmo o populismo e suas características iliberais, sob uma teoria como a de Schumpeter são normais e até mesmo benéficas, na medida em que as instituições que garantem a competição e a alternância de elites perdurem. No entanto, sob uma teoria democrática que sustente a existência de um bem comum e afirme que a democracia deve e tem a capacidade de formar identidades coletivas ativas, tais elementos serão vistos negativamente. É por esta razão que até mesmo medidas elitistas para conter as massas no jogo democrático possam se tornar soluções antiliberais, um justo equilíbrio entre a participação popular e as medidas tecnocráticas é necessário, para isso seria ótimo analisar uma parte do Estado pouco levada em conta: a burocracia, mas isso é tema para outro dia.

Bibliografia:

Brennan, Jason. Debating Democracy: Do We Need More or Less? 2022.

Crouch. Post-Democracy. 2004. 

Mair, Peter. Ruling the Void. 2013. 

Milanovic, Branko. Capitalism Alone. 2021. 

Rodrik, Dani. A Paradoxo da Globalização. 2012. 

Schumpeter, Joseph. Capitalismo, Socialismo e Democracia. Madrid, 1942. 

Urbinati, Nadia. Democracy Disfigured. 2014. 

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marcos pascis

marcos pascis

Olá, meu nome é Marcos, sou historiador e docente, mestre em pesquisa histórica pela Universidade de San Andrés e doutorando em História pela Universidade Torcuato Di Tella. Estou interessado em ideias políticas, intercâmbios culturais e políticas públicas.

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