María Lourdes Lobo
Estudante de Relações Internacionais, Universidade San Pablo Tucumán
Introdução
Este artigo analisa a reconfiguração da ordem mundial a partir da rivalidade estrutural entre os Estados Unidos e a China, focando em suas implicações para a América Latina e, especialmente, para a Argentina. Através das lentes teóricas do realismo, da dependência e do multilateralismo crítico, examina-se como a região, historicamente condicionada por vínculos assimétricos, enfrenta um dilema geopolítico chave. Deve alinhar-se com uma potência? Ou pode desenvolver uma política externa autônoma, estratégica e flexível em um mundo em transição? Ao longo do texto, propõe-se que a adoção de uma abordagem de realismo periférico atualizado pode oferecer à Argentina uma alternativa pragmática para se posicionar em um cenário internacional cada vez mais competitivo e fragmentado.
A reconfiguração da ordem internacional
Desde o colapso da União Soviética, os Estados Unidos desfrutaram de uma posição hegemônica relativamente incontestada. No entanto, nas últimas décadas, o ascenso econômico, tecnológico e militar da China questionou essa ordem unipolar. A guerra comercial iniciada por Donald Trump foi apenas uma manifestação econômica de uma disputa estrutural muito mais profunda, como apontou Graham Allison (2017). Essa rivalidade levanta questões sobre a forma que o sistema internacional adotará: bipolidade, multipolaridade ou uma ordem híbrida em disputa permanente?
Autores como Fareed Zakaria (2008) argumentam que estamos diante de um "mundo pós-americano", onde os Estados Unidos continuam sendo uma potência central, mas compartilham o cenário com atores emergentes que desafiam sua liderança em múltiplas dimensões. A competição entre Washington e Pequim não se limita ao campo econômico: inclui a supremacia tecnológica (Huawei, chips, 5G), a financeira (yuan digital vs. dólar), a militar (Indo-Pacífico) e a diplomática, com uma luta pela influência em regiões estratégicas do Sul Global.
A América Latina entre a irrelevância e a oportunidade
A América Latina se encontra aprisionada entre velhas dependências e novas oportunidades. A falta de integração regional e a ausência de uma estratégia comum limitam sua margem de manobra diante das grandes potências. Como alerta Roberto Russell (2019), a região oscila entre a subordinação e a irrelevância, sem conseguir influenciar de maneira significativa a arquitetura internacional.
A China expandiu sua presença na América Latina por meio de investimentos estratégicos em energia, mineração, infraestrutura e telecomunicações, muitos deles vinculados à iniciativa da Belt and Road Initiative (BRI). Países como Brasil, Peru, Bolívia e Argentina encontraram na China um parceiro chave para diversificar exportações e obter financiamento com menor condicionalidade política. No entanto, isso também reproduz certas lógicas de dependência externa, agora sob novas formas (Tokatlian, 2021).
Por sua vez, os Estados Unidos mantêm sua influência por meio de instituições financeiras como o FMI e o BID, bem como mecanismos diplomáticos como a OEA. Essas ferramentas permitem a Washington condicionar políticas internas sob a aparência de assistência ou legitimidade internacional. A continuidade desses esquemas gera uma forma de "dependência disciplinar" (Russell & Tokatlian, 2002), que limita a autonomia dos países latino-americanos em momentos críticos.
O dilema argentino: alinhamento ou autonomia?
Nesse contexto, a Argentina se encontra em uma posição delicada. O governo de Javier Milei optou por um alinhamento ideológico com os Estados Unidos, que se traduziu na recusa de ingressar nos BRICS e em um esfriamento da relação com a China. Essa postura, embora coerente com a retórica oficial, implica riscos concretos. A China é o segundo parceiro comercial do país e um importante fornecedor de investimentos, financiamento e infraestrutura. Marginalizar essa relação pode reduzir significativamente as opções estratégicas do país em um mundo competitivo e de alianças múltiplas.
Além disso, essa mudança tem consequências econômicas diretas. No setor agroexportador, a tensão com a China poderia afetar o acesso ao mercado de soja e carne. Na indústria, as restrições ao financiamento chinês colocam em dúvida obras de infraestrutura chave, como as represas em Santa Cruz ou o Belgrano Cargas. Em relação ao lítio, onde a Argentina compete por atrair investimentos no triângulo do lítio, o distanciamento da China (um dos maiores compradores globais de baterias) poderia limitar as oportunidades de desenvolvimento tecnológico nacional (De la Balze, 2023; Tokatlian, 2020).
Em termos políticos, o alinhamento incondicional reduz as margens para uma política externa autônoma e pode ter custos futuros em cenários de maior fragmentação global. Em vez de se adaptar a um sistema multipolar flexível, a política externa argentina parece adotar uma lógica de Guerra Fria, pouco funcional no contexto atual.
Rumo a uma postura alternativa: o realismo periférico atualizado
Diante dessas tensões, uma alternativa viável para a política externa argentina é o realismo periférico atualizado, uma corrente teórica que reconhece as limitações estruturais dos países em desenvolvimento, mas que ao mesmo tempo promove estratégias pragmáticas orientadas a maximizar a autonomia relativa (Escudé, 1992). No entanto, ao contrário de sua formulação original, o contexto atual exige repensar seus postulados-chave.
O realismo periférico clássico foi formulado em um cenário de hegemonia unipolar e crise econômica interna. Hoje, a competição sistêmica global, o enfraquecimento da ordem liberal, a digitalização da geopolítica e a emergência de temas transnacionais como a mudança climática obrigam a complexificar a abordagem.
Um realismo periférico atualizado deve incorporar pelo menos três novas dimensões:
Multilateralismo pós-pandemia: Novas formas de cooperação global (vacinas, saúde, dívida, clima) revelam que mesmo os países periféricos podem ter voz se articularem estratégias coletivas inteligentes (Tokatlian, 2020).
Tecnologias digitais e dados: A geopolítica contemporânea não se disputa apenas em bases militares ou mercados de matérias-primas, mas no controle de dados, inteligência artificial e plataformas digitais, espaços onde a China e os EUA competem abertamente.
Agenda climática: A transição energética global impõe dilemas complexos sobre recursos naturais. A Argentina precisa de políticas que evitem uma nova forma de extrativismo subordinado e que busquem a criação de cadeias de valor com autonomia tecnológica.
Uma abordagem desse tipo implicaria:
Diversificar relações exteriores, mantendo vínculos ativos com os Estados Unidos, China, a União Europeia, os BRICS e outros polos emergentes.
Impulsionar instâncias de cooperação regional, mesmo em esquemas flexíveis, para aumentar a capacidade de negociação coletiva.
Evitar a ideologização da política externa, priorizando em vez disso uma orientação baseada em interesses estratégicos e pragmatismo.
Revalorizar instrumentos multilaterais, como o G20, CELAC ou UNASUR, que podem ampliar os margens de ação sem exigir alinhamentos automáticos.
Essa abordagem permitiria à Argentina navegar pelas turbulências da ordem internacional em transição sem ficar subordinada aos interesses de uma única potência. Seria, além disso, uma forma de recuperar uma tradição diplomática que, com nuances, procurou o equilíbrio entre autonomia, cooperação e pragmatismo.
Conclusão
A reconfiguração da ordem mundial obriga os países periféricos a repensar seu lugar no sistema internacional. A América Latina, e particularmente a Argentina, enfrentam o desafio de desenhar uma política externa que combine autonomia, flexibilidade e realismo. Em vez de optar por alinhamentos irrestritos que aprofundam a dependência, é mais conveniente adotar uma lógica estratégica que permita aproveitar as tensões globais para ampliar as margens de ação. Nesse sentido, o realismo periférico atualizado oferece uma estrutura útil para uma política externa inteligente em tempos incertos, incorporando novas variáveis que Escudé não pôde prever, mas que hoje são centrais para repensar a autonomia.
Bibliografia
Allison, G. (2017). Destined for War: Can America and China Escape Thucydides’s Trap? Houghton Mifflin Harcourt.
Cardoso, F. H., & Faletto, E. (1969). Dependencia y desarrollo en América Latina. Siglo XXI.
De la Balze, F. (2023). Argentina e a geopolítica do século XXI. Revista de Relações Internacionais, CARI.
Escudé, C. (1992). Realismo periférico: fundamentos para a nova política exterior argentina. Editorial Planeta.
Russell, R. (2019). América Latina e a ordem internacional: o desafio de pensar estrategicamente. UNSAM Edita.
Russell, R., & Tokatlian, J. G. (2002). O lugar do Brasil na política exterior argentina: uma visão a partir do realismo periférico. FLACSO.
Tokatlian, J. G. (2020). Autonomia e diplomacia: pensar a política externa em tempos de mudança. Siglo XXI.
Tokatlian, J. G. (2021). China na América Latina: uma nova dependência? Nova Sociedade, (292).
Zakaria, F. (2008). The Post-American World. W. W. Norton & Company.
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