Cenário Internacional
O mundo está passando por uma transformação profunda e vertiginosa. A hegemonia que durante décadas os Estados Unidos e a Europa exerceram mostra claros sinais de erosão: polarização política, crises econômicas, desconfiança institucional, protestos maciços e um minar da influência cultural em relação a novas potências emergentes. Assim, a China se consolida como um ator global cada vez mais influente, não apenas em termos militares, mas também financeiros, geopolíticos e tecnológicos. A guerra na Ucrânia, o conflito persistente entre Israel e Palestina, e as tensões latentes em torno de Taiwan desenham um mapa internacional marcado pela incerteza e pelo conflito, que assola o mundo todo com a ameaça de um conflito global de escalas inéditas.
Aqui é onde a Argentina se apresenta uma oportunidade histórica única. Sua posição geográfica, afastada dos principais focos de conflito internacional, lhe confere uma neutralidade geopolítica extremamente valiosa. A isso se soma um vasto capital cultural: uma história rica, uma identidade latino-americana profundamente conectada com a tradição ocidental, e uma capacidade de produção artística, acadêmica, científica e humanista que brilhou além de suas fronteiras. A Argentina pode se erigir como um último bastião católico, democrático e ocidental, mas não por seu arsenal militar ou seu poder econômico, mas por um fator muito mais intangível, mas extremamente cortante: seu calibre cultural.
A Argentina conta com um commodity único que é sua argentinidade, possuindo assim um enorme poder de atração que lhe fornece a capacidade de influenciar através da cultura, das ideias, do talento e do modo de vida nos demais países da América Latina - e projetar para o resto do mundo. Com Buenos Aires como epicentro, soube ser durante o século XX a capital cultural da América Latina, exportando escritores, músicos, cientistas, intelectuais, atletas e artistas que marcaram gerações inteiras e transcenderam como ícones universais. A argentinidade — esse coquetel exquisito de herança europeia, paixão criolla e inventividade mestiça — é o instrumento capaz de conectar, inspirar e liderar nos campos musical, cinematográfico, literário, científico, esportivo, gastronômico e intelectual. Um exemplo inegável desse calibre é o Papa Francisco, talvez o argentino mais aclamado e influente de todos os tempos, cuja mensagem de proximidade, humildade e justiça social comoveu o mundo inteiro e atraiu milhões de pessoas novamente ao catolicismo. Sua figura não apenas restituiu o prestígio da Igreja, mas também colocou em primeiro plano a identidade argentina como uma síntese potente entre tradição e modernidade, fé e compromisso social.
O legado cultural da Argentina: Um pilar histórico de soft-power
Ao longo de sua história, a Argentina exerceu um papel central como referência cultural na América Latina e no hemisfério sul. Buenos Aires como epicentro, foi e continua sendo uma das cidades mais vibrantes do continente: conhecida como a “Paris da América do Sul”, combina uma arquitetura majestosa com uma vida cultural inesgotável. Livrarias, cafés, teatros, boulevards, festivais, cinemas, lojas de discos e uma produção intelectual que rivaliza com a das grandes metrópoles do mundo.
Foi berço de gigantes da escrita como Jorge Luis Borges, Julio Cortázar e Ernesto Sábato, cujas obras transcenderam idiomas e fronteiras. A isso se soma o tango — com figuras do porte de Carlos Gardel ou Astor Piazzolla —, a potência do rock nacional - com Luis Alberto Spinetta e Charly García como principais referências, entre muitos outros -, a música clássica - onde brilhou a lendária Martha Argerich -, o folclore - com Mercedes Sosa como a Voz da América - e um cinema que soube construir histórias comoventes a partir de nossa marca local - com filmes como A História Oficial ou O Segredo dos Seus Olhos, ambos ganhadores do Oscar. Não podemos omitir também a nova figura de René Favaloro, que revolucionou a medicina mundial ao desenvolver a técnica de bypass coronário, salvando milhões de vidas e deixando um legado de excelência científica e compromisso ético. A Argentina também se ergue como um farol educacional, científico e de pensamento político na região. A Universidade de Buenos Aires (UBA) — gratuita e universal — formou cinco prêmios Nobel e milhares de profissionais que hoje brilham dentro e fora do país. O pensamento crítico, a discussão política e a produção teórica têm sido parte do ar que se respira em suas salas de aula, consolidando a Argentina como um celeiro de ideias que nutre toda a região.
A rebeldia, criatividade e profundidade emocional argentina causaram furor a nível global. Desde Lionel Messi até o Papa Francisco. A literatura argentina também vive hoje um momento de projeção, com figuras como Mariana Enriquez, que renova o gótico rioplatense com impacto internacional. Obras como O Eternauta, reeditadas em múltiplos idiomas, refletem uma idiossincrasia popular e épica que volta a captar a atenção de novas gerações. Até mesmo no mundo da ciência e da tecnologia, pesquisadores e médicas argentinas lideram projetos em laboratórios dos Estados Unidos, Europa e Ásia, mostrando que o conhecimento também é um veículo de projeção nacional. Jovens talentos como Franco Colapinto na Fórmula 1 representam uma nova geração que leva a bandeira azul e branca além do esporte. Esse legado não é uma relíquia, mas sim uma plataforma ressonante. O Ocidente se encontra alienado pelo conflito e pela desesperança, e a Argentina pode se tornar a bússola austral que lidere do ponto de vista humano e intelectual.
Vantagens geopolíticas: distância e neutralidade como ativos
Em um mundo atravessado por conflitos armados, tensões diplomáticas e uma crescente instabilidade, a localização geográfica da Argentina representa um ativo estratégico pouco valorizado. Afastada dos principais pontos de tensão, a Argentina se apresenta como um refúgio de estabilidade relativa, livre de ameaças externas diretas e alheia a rivalidades geopolíticas de grande escala. Sua tradição histórica de não alinhamento automático em conflitos globais, juntamente com sua pertença a organismos como o G20, o Mercosul e as Nações Unidas, lhe permite manter uma voz equilibrada nos fóruns internacionais. A isso se soma a riqueza de seus recursos naturais: lítio, energia, alimentos, água doce e biodiversidade, que se tornam cada vez mais valiosos em um mundo onde as cadeias de suprimento estão fragmentadas por guerras ou disputas estratégicas.
Para que a Argentina converta esse capital cultural em verdadeira influência internacional, necessita de uma estratégia deliberada e sustentada de projeção de sua identidade ao mundo. Assim como a Austrália soube capitalizar sua estabilidade e distância dos conflitos para se projetar como um parceiro confiável em sua região, a Argentina pode adotar um modelo semelhante, mas com um diferencial próprio: uma projeção baseada no poder simbólico de sua cultura, sua história e sua distinta identidade. Devemos aprender também com países como Japão e Coreia do Sul, que entenderam isso perfeitamente: através do anime, K-pop, cinema, literatura ou gastronomia, conseguiram instalar sua marca cultural na mente de milhões sem necessidade de intervenção militar ou domínio econômico. A Argentina poderia seguir um caminho semelhante, promovendo seu legado cultural com políticas públicas ativas e coordenação entre Estado, sociedade civil e setor privado. O tango, o futebol, a literatura, a ciência, a moda, a gastronomia, a arte contemporânea e até mesmo o humor argentino, são elementos exportáveis que despertam admiração e simpatia. O país já possui os ingredientes; o que falta é um relato unificador e uma decisão estratégica de ocupar esse lugar no mundo que, hoje mais do que nunca, está disponível.
O sul como o novo norte do Ocidente
Neste contexto global marcado pelo risco de uma nova conflagração de alcance mundial, a Argentina tem diante de si uma oportunidade histórica. Sua neutralidade geopolítica, sua posição periférica em relação aos grandes focos de tensão, sua riqueza em recursos estratégicos e, acima de tudo, seu capital cultural, a coloca em um lugar singular: o de se tornar um norte de estabilidade, criatividade e inspiração no hemisfério sul. Longe dos centros tradicionais de poder, mas intimamente conectada com a tradição ocidental, a Argentina pode se projetar como uma ponte entre o mundo que declina e o mundo que emerge, uma referência simbólica e cultural que irradie valores, talento e identidade do sul para o resto do planeta, onde o sul surja como o novo norte. Diante dessa oportunidade, enfrenta o imenso desafio de pensar grande: superar seus dilemas internos, ordenar suas prioridades e apostar em uma estratégia de projeção internacional ambiciosa, coerente e sustentada. Em tempos onde as potências tradicionais hesitam, a Argentina tem a chance de brilhar com luz própria. O mundo não busca mais apenas força. Busca sentido. E aí, a Argentina tem algo profundo a oferecer.
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