Nos últimos tempos, o cenário político se tornou uma novela tão suculenta e complexa que, se um executivo da Netflix tivesse lido o roteiro, teria descartado por achá-lo inverossímil. E não, não me refiro à aclamada série que Javier Milei lançou. Refiro-me a uma menos editada e, portanto, mais atraente. Como capítulos, devoramos os chats, fotos, áudios e vídeos, que revelavam o fim da história de um herói transformado em vilão. O protagonista não é outro senão o ex-Chefe do Executivo, Alberto Fernández, que já no final de seu mandato havia perdido seu estrelato, tornando-se um sem brilho personagem secundário. Com o tempo, talvez, ele teria sido lembrado como uma figura frágil, um ator que, devido às circunstâncias, não conseguiu desenvolver seu pleno potencial. Isso é, claro, até que um incrível plot twist o condenou perpetuamente ao ostracismo.
Os eventos foram revelados após o juiz Julian Ercolini, no meio da causa dos seguros, notar que no celular da secretária privada de Alberto haviam chats com Fabiola Yañez, nos quais se revelava a violência exercida pelo ex-presidente sobre sua parceira. Apesar de em um primeiro momento a ex-primeira dama ter rejeitado registrar uma denúncia, as imagens e chats foram divulgados algum tempo depois pela Infobae. A surpresa e indignação rapidamente calaram na sociedade argentina e as críticas mais severas recaíram sobre Fernández.
Alberto, que parecia confortável nas sombras, foi levado novamente ao centro do palco ao expor sua faceta mais obscura. As agressões exercidas contra sua ex-parceira, as reuniões com personagens diversos e os vídeos com amantes aprofundaram o descontentamento já gerado pela infame Festa de Olivos e pelas visitas questionáveis durante a pandemia. A evidência era clara, nunca foi tão notório o desdém que o ex-mandatário tinha sobre as normas do país e a investidura presidencial.
Rapidamente, o ex-dirigente tentou, em vão, mitigar o dano e pediu uma medida cautelar para proibir que se publiquem e reproduzam suas fotos e vídeos íntimos, já que estariam ameaçando seu "nome, honra, imagem, intimidade e/ou integridade". Do que Alberto parecia não perceber, é que a própria essência de sua ação e não sua propagação, é o que prejudica sua dignidade. E que a tentativa de censura o incrimina ainda mais.
No entanto, parece que a falta de compromisso com a transparência é um atributo comum entre as forças políticas argentinas. No início do mês, o Presidente Javier Milei assinou um decreto onde se modifica a Lei 27.275 de acesso à informação pública, sancionada em 2016. Através deste DNU, amplia-se a discricionariedade do Estado ao definir quais dados estão sujeitos a investigação a partir de uma solicitação de informação. Estabelece-se uma clara diferenciação entre a informação pública, aquela que compreende questões de interesse comum, ligada à atividade estatal, e a informação privada, relacionada à esfera doméstica do funcionário. Segundo essa distinção, por exemplo, poderia ser negada a divulgação do registro de entradas de pessoas à Quinta de Olivos, por pertencer ao âmbito privado. Com o mesmo espírito restritivo, contempla-se a possibilidade de iniciar ações legais contra quem não realizar uma solicitação de informação "de boa fé", o que dá aos políticos a possibilidade de perseguir aqueles, jornalistas particularmente, que façam perguntas que não estão dispostos a responder.
Esse tipo de políticas, minam o processo de prestação de contas, um pilar fundamental das democracias modernas. A prestação de contas, definida por Andreas Schedler, professor e pesquisador do Centro de Pesquisa e Docência Econômica (CIDE) na Cidade do México, é composta por duas noções. Por um lado, a obrigação dos funcionários de dar explicações sobre sua atuação e, por outro, a possibilidade de puni-los se estes violarem seus deveres. É então, um mecanismo de controle e vigilância que o povo tem sobre o poder. Quando se impede o acesso adequado à informação, restringe-se o escrutínio público ou dificulta-se a participação cidadã, corre-se o risco de criar um caldo de cultivo onde abusos e corrupção possam prosperar sem serem detectados.
A limitação sobre a prestação de contas levada a cabo por Javier Milei, apenas consolida o poder extraordinário de “a casta” que ele diz combater. É paradoxal que um governo tão empenhado em lutar contra “os políticos”, amplie seus privilégios sobre os demais cidadãos, em um contexto onde aqueles que estão no comando possuem um arsenal de ferramentas tecnológicas que lhes permite conhecer tudo o que desejam saber sobre uma pessoa. Esse tipo de medidas apenas reforça a percepção de que os dirigentes são seres intocáveis que não estão sujeitos à lei. No entanto, a história nos ensinou que, diante da ineficácia de canais institucionais que processem e encaminhem as demandas da cidadania, esta tende a encontrar seus próprios meios. Com o tempo, a sociedade, já não envia solicitações nem escuta desculpas vazias, mas se torna uma turba violenta e ingovernável que já não pede explicações, mas exige represálias.
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