O presidente iraniano, Ebrahim Raisi, à direita, e seu homólogo venezuelano, Nicolás Maduro, apertam as mãos ao final de sua coletiva de imprensa conjunta no Palácio de Saadabad em Teerã, Irã, no sábado, 11 de junho de 2022. © Vahid Salemi / AP
O poder, em seu estado mais cru, não se assenta apenas sobre a força, mas sobre uma estrutura complexa de legitimidades artificiais, redes transnacionais de sustentação e ficções cuidadosamente mantidas. Nicolás Maduro não governa a Venezuela: ele a administra a partir de um regime que se transformou em uma máquina autopoética de reprodução autoritária. Perguntar-se se “pode cair” equivale a interrogar o próprio coração do modelo híbrido que amalgama despotismo, fachada eleitoral e alianças internacionais de conveniência. Neste tabuleiro, a Venezuela não joga sozinha: e é precisamente o movimento de seus aliados —Irã, Rússia e China— que poderia abrir, pela primeira vez em anos, uma brecha significativa em seu blindagem.
Um tridente assimétrico: Caracas, Teerã, Moscou
A geopolítica do chavismo é, acima de tudo, uma política de sobrevivência. Nesse sentido, deve-se ler seu alinhamento com os três grandes contrapesos da ordem liberal ocidental. O regime de Maduro consolidou um modelo de diplomacia da dependência: petróleo por lealdade, ouro por armamento, legitimação internacional por tecnologia de controle.
O Irã fornece treinamento militar e táticas de repressão civil sofisticadas (o “modelo Basij” transferido para o contexto urbano venezuelano), além de uma cooperação opaca em refinarias e contrabando de petróleo. A Rússia, por sua vez, atua como garantidora da estabilidade estratégica: financia, arma e —sobretudo— bloqueia resoluções em fóruns multilaterais que poderiam escalar em sanções efetivas. A China opera como banqueiro silencioso e estrategista de longo prazo: seu interesse é o lítio, o petróleo e uma posição chave na periferia americana.
Mas há algo mais sutil: esses três atores, cada um a seu modo, sustentam Maduro não apenas como aliado, mas como símbolo. Em um mundo fraturado, a continuidade do regime venezuelano funciona como um dedo no olho do Ocidente, uma prova de que o tempo do “mudança de regime” se tornou obsoleto como doutrina.
O que sustenta o regime além do petróleo?
A economia do chavismo pós-petroleira —porque sim, o chavismo sobreviveu ao ocaso da PDVSA como potência— se reconfigurou em uma amalgama de economias ilícitas, redes clientelistas e uma dolarização informal que sustenta o setor mais acomodado do oficialismo. O sustento do regime é, hoje, mais “extraterritorial” do que nacional: o crime organizado, os vínculos com o Hezbollah, a triangulação com o regime iraniano e as rotas de narcotráfico controladas por setores do Estado configuram um modelo de sustento político-financeiro que o analista Moisés Naím denominou acertadamente de “o Estado criminoso”.
Essa configuração não é um acidente, mas sim uma adaptação estrutural. A Venezuela não é mais uma economia rentista, mas sim uma economia de enclave criminal com fachada institucional. Sua persistência não depende mais tanto do preço do petróleo, mas da continuidade desses vínculos externos que fornecem logística, legitimação e know-how repressivo.
Irã: o calcanhar de Aquiles?
Poucas vezes se conecta a estabilidade de Caracas com as oscilações de Teerã. No entanto, o nexo não é menor. O Irã não é apenas um aliado diplomático: é um fornecedor estratégico de infraestrutura energética, logística clandestina e assessoria repressiva. O colapso interno do regime iraniano —diante de uma hipotética transição, revolução ou derrota regional— não só enfraqueceria essa aliança, mas mostraria, por contraste, o isolamento de Maduro em um mundo cada vez mais reconfigurado por novas alinhamentos.
A pergunta, então, não é simplesmente “pode Maduro cair?”, mas “o que deve cair para que Maduro caia?”. Nessa equação, o Irã aparece como um nodo de poder crucial. Se desarticular o eixo Teerã-Caracas, se interrompe um dos fluxos vitais do regime: o da assessoria operacional e a circulação financeira ilícita. Não é casual que os momentos de maior tensão no Oriente Médio coincidam com um reforço discursivo do oficialismo venezuelano: as guerras distantes têm efeitos imediatos no Palácio de Miraflores.
Eleição, oposição e a ficção democrática
O regime venezuelano aperfeiçoou um sistema eleitoral em que o ato do voto é uma cerimônia esvaziada de eficácia política. As recentes tentativas da oposição de articular uma força unificada colidiram contra uma máquina eleitoral manipulada, um sistema judicial cooptado e um aparato repressivo que desativa a dissidência antes que consiga se constituir. A exclusão de candidaturas como a de María Corina Machado não é um erro institucional: é a lógica interna do modelo de “autoritarismo competitivo”, de acordo com Levitsky e Way, em sua versão mais despudorada.
A oposição, dividida, desmoralizada e muitas vezes cooptada, funciona como sparring do regime. O chavismo precisa que a oposição exista, mas que nunca vença. Este equilíbrio se mantém graças ao blindagem internacional que garante que o colapso não escale em intervenção, e que a repressão não provoque uma reação global coordenada.
Regimes sustentados de fora: lições comparadas?
A história do século XXI mostrou que os regimes autoritários sobrevivem não por força interna, mas por alianças externas funcionais. A Coreia do Norte sem a China não existiria. A Síria sem a Rússia teria caído há uma década. Cuba sem a Venezuela teria implodido. A Venezuela, sem Irã e sem Moscou, já não seria o que é. A autarquia morreu: mesmo os regimes mais fechados precisam do sistema internacional, mesmo que seja para subvertê-lo.
Nesse sentido, Maduro é mais um sintoma do que uma causa. Representa a capacidade dos autoritarismos de se adaptar ao sistema global, operar em sua sombra e sobreviver graças ao seu cinismo estrutural. O regime aprendeu a negociar sanções, a explorar fissuras diplomáticas e a seduzir aqueles que preferem negócios a princípios.
É possível o xeque-mate?
A Venezuela não desmoronará por dentro. Não cairá por pressão da cidadania, nem por eleições “livres” organizadas por aqueles que garantem sua opacidade. O eventual “xeque-mate” a Maduro só poderia vir por uma ruptura no tabuleiro maior: um colapso de suas alianças externas, uma implosão financeira de suas redes de sustentação ou uma recomposição regional que o tornasse dispensável para seus parceiros.
Mas mesmo então, a queda não é garantia de transição democrática. As estruturas do chavismo transcendem a Maduro. O problema não é apenas o homem, mas o sistema que o engendrou, o sustentou e —se cair— é provável e capaz de mutar novamente.
Em última análise, a pergunta não é apenas se pode cair Maduro, mas se o mundo quer que isso aconteça. Porque em um mundo fragmentado, instável e cínico, regimes como o dele não são uma anomalia… são um aviso.
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