Costuma-se dizer que um dia sem riso é um dia perdido. Mas há limites para o humor? Quem determina o que é engraçado e o que não? Há uma linguagem universal para a humorada? As piadas irreverentes costumam bordar os limites do politicamente correto, mas no território da comédia, o contexto é fundamental. Invite-nos a refletir e cada vez mais frequentemente, abrem-se debates nas redes sociais e nos meios de comunicação em massa sobre esses limites intangíveis.
Nem a mismíssima Rainha Isabel II conseguiu descansar em paz enquanto seu filho se tornou o rei Carlos III. Figura de continuidade incorruptável para uma nação sacudida pela mudança, a decepção e a divisão, Isabel II disse em alguma oportunidade "Sou o último bastião das normas". Mas o Charlie Hebdo não se rege pelas regras. O seminário satírico francês de esquerda, fundado em 1992, caracteriza-se por suas caricaturas provocadoras que revoltaram muçulmanos, judeus e católicos. Seu trabalho foi motivo de julgamento, debates pela liberdade de expressão, acusações de provocações a facções religiosas e ataques.
É por isso que só lhe tirou uma semana publicar seu exemplar N1573 batendo a imagem do novo Rei da Grã-Bretanha. Nesta ocasião, pode-se ver na capa uma caricatura do novo monarca em um trono sobre uma roda de carro, fazendo alusão ao acidente automóvel ocorrido em 1997 que terminou com a vida da Princesa de Gales. Com uma etiqueta que o descreve como “o assassino de Lady Di” e uma bolha de diálogo onde o personagem exclama “O crime pagou!”. Em uma mão sustenta uma serra e sua expressão facial demonstra um cinismo desmedido, onde o soberano parece gozar a morte da mãe de seus filhos e ter planejado tudo em uma estratégia para conseguir o poder e a atenção total do povo inglês.
Na sexta-feira, 9 de abril de 2021 faleceu o Príncipe Felipe de Edimburgo aos 99 anos e desde a editora também não podiam deixar passar tal acontecimento. Nesta oportunidade, a revista[1] Ele publicou a seguinte caricatura, onde você pode ver o “homenagem de Harry e Meghan” ao Príncipe Felipe. Por um lado, encontra-se o neto do falecido vestido e gesticulando como um agente Nazi, em relação àquela ocasião em 2005 quando o príncipe Harry foi fotografado “disfraçado” com uma esvástica no braço. Por outro lado, encontra-se a ex- Duquesa de Sussex caracterizada de aborigen, praticamente nua com um taparrabo de bananas, saúdeando grotescamente ao falecido. Com insinuações racistas e anti-semitas, os cartunistas apontam para burlar a monarquia britânica e a debacle da mesma com os acontecimentos dos últimos anos. Sendo um meio que se identifica com a esquerda, não surpreende o ensanhamento com a instituição monárquica e tudo aquilo que representa (uma vida de luxos e privilégios). Mas para além desse caráter agitador das diretrizes da revista, haveria que analisar o contexto da publicação.
A terceira publicação controversa que pode ser analisada numa clara campanha de desprestígio da monarquia e seus simbolismos de privilégios tem a ver com uma caricatura que mostra a rainha Isabel do Reino Unido ajoelhada sobre o pescoço de Meghan Markle, a duquesa de Sussex, em uma clara referência à morte de George Floyd. A caricatura de capa foi publicada dias depois de Meghan e Harry fazerem uma série de declarações contra a família real em uma entrevista com Oprah Winfrey, na qual se inclui uma sobre o tom de pele do filho do casal, Archie, e como resultou em um tema de discussão antes de nascer. A caricatura, publicada no sábado, é intitulada "POR QUÉ MEGHAN DEJÓ BUCKINGHAM", com um desenhadoda Meghan respondendo: "Porque já não podia respirar!". Em meio a um contexto altamente racista, a ilustração cobra outra significância, tanto para essa mãe, quanto para todos aqueles que podem se identificar com esse sofrimento. Halima Begum, diretora executiva do grupo de igualdade racial Runnymede Trust, afirmou no Twitter que esta imagem não desafia os limites, não faz reir nem combate o racismo. Para ela, simplesmente degrada os problemas e causa ofensas em todos os âmbitos.
“Uma sociedade sem limites seria uma sociedade sem sentido do humor”, defende Javier Gomá. Para o filósofo e diretor da Fundação Juan March, o jogo que existe entre respeitar e questionar essas fronteiras é o que produz o efeito cômico. Pode-se argumentar que, apesar de ser a família Real, também é uma família que atravessou (no caso de Filipe) e está atravessando (no caso de Isabel) um doloroso duelo ou crise (no caso de Meghan). Adido a isto, devem suportar o escrutínio público. O que pode parecer um desenho provocador e de mau gosto (em sua linha), torna-se uma barbaridade quando você conhece um pouco vida das pessoas.
“Qualquer pessoa tem direito a dizer que uma piada lhe parece um lixo sem que isso suponha um prejuízo para a liberdade de expressão do chistoso. ” Jaime Rubio Hancock. Para o jornalista e escritor, responsável pelo especial humor do jornal El País, cada parte tem direito a réplica. O fato de alguém dizer que “é apenas uma piada” não blinda o comentário contra toda crítica nem obriga os outros a rir.
Pode-se dizer que este é um debate sem fim, porque enquanto alguns argumentam que haveria que rever certas publicações que em nome do humor só geram ódio, outros argumentam que a liberdade de expressão deve ser defendida como valor fundamental da democracia.
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