26/05/2023 - politica-e-sociedade

O julgamento político a Fernando Lugo: o primeiro antecedente dos golpes moles na América Latina

Por lucia pereyra

Imagen de portada
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O julgamento político ao ex-presidente do Paraguai Fernando Lugo pode ser considerado ilegítimo tendo em conta seu processo. Um importante fator é a rejeição e o medo da ‘ola rosa’ ou ‘ola vermelha’ (da década de 2010), uma série de asensos de governos de centro-esquerda ou de esquerda, normalmente populistas, totalmente repudiado pelos setores tradicionais, conservadores, as Forças Armadas e o Partido Colorado do Paraguai. Além disso, Lugo foi o primeiro presidente após um longo período de governação do Partido Colorado, desde 1989.

Julgamento político no Paraguai: o alcance do mau desempenho de funções

O artigo 225.o da Constituição paraguaia de 1992 estabelece que se pode realizar julgamento político ao presidente da República, ao vice-presidente, ministros, juízes da Suprema Corte, entre outros funcionários de alto cargo por “mal desempenho de suas funções, por crimes cometidos no exercício de suas acusações ou por crimes comuns”. A Câmara dos Deputados e a de Senadores legalmente aprovaram com uma maioria de pelo menos dois terços (de cada câmara) a autorização para submeter Fernando Lugo a julgamento político por mau desempenho de suas funções, em 2012. Embora “o mau desempenho de funções” possa ter diferentes interpretações e se debate até onde chega o mau desempenho (que até mesmo se discute no nosso país), esse termo é aceito no Paraguai como a violação de elementos constitucionais ou de tratados e leis com alta hierarquia.

No artigo 17.o da constituição data sobre os processos judiciais, seja ordinários ou de julgamento político. Esses processos devem ser respeitados como garante a própria Constituição. Por conseguinte, se em qualquer processo judicial realizado for corrompido o artigo 17.o, deve ser considerado ilegítimo.

Quanto às razões pelas quais Lugo é acusado por mau desempenho, a primeira é o ato juvenil ‘socialista’ e ‘de esquerda’ no Comando de Engenharia das Forças Armadas, realizado em 2009, consideradas naquele então como perigosas, já que estariam contra os valores da classe oligárquica. O promotor responsável por esta causa não apresentou provas válidas, apenas o que transmitiram os meios de comunicação em massa e artigos jornalísticos com críticas ao governo. É demonstrado neste primeiro ponto que o apresentado não foi o suficiente para que se adjudique ao presidente uma acusação como tal, que careceria de sentido sem as provas correspondentes de que Lugo realmente participou.

As acusações infundadas contra Lugo: falta de provas no mau desempenho presidencial

A segunda causa foi o Caso Ñacunday, na qual se o culpou Lugo de ter sido partícipe da ocupação de terras privadas e ter intencionalmente demorado a chegada da polícia na região. Também não foram apresentadas provas contundentes, mas o promotor argumentou que Lugo foi cúmplice da demora das forças policiais, ao que desemboca em uma promoção da violência e das invasões. Isso comprova que não está evidenciada a suposta incompetência, ineficácia ou cumplicidade do acusado nesses atos, mas que a polícia teria que ser julgada por essa certa ‘torpeza’ na hora de exercer suas funções.

A terceira causa imposta foi o aumento de insegurança no país e a sua incapacidade de executar políticas públicas suficientemente eficazes para diminuir ou controlá-la, bem como sua negação para destituir ou despedir o seu Ministro de Segurança, altamente criticado pelo Poder Legislativo durante seu mandato.

Em quarto lugar, acusou-se o Presidente de ter enviado aos seus representantes das Relações Exteriores do Paraguai para assinar a Carta Democrática da UNASUR e não ter enviado o projeto ao Poder Legislativo (dado o equilíbrio de poderes) para discutir e aprovar a assinatura, pelo que, na verdade, não seria válida a assinatura da Carta Democrática da UNASUR dentro do território paraguaio. Por ende, Fernando Lugo é acusado de ter exercido funções de Presidente nas relações externas do país.

A causa mais importante e chocante da que foi acusado o Presidente paraguaio foi La Matanza de Curuguaty. Ocorreu em 2012 e foi o ponto de viragem no mandato do Presidente, que gerou tal repercussão e tanta condenação social como internacional, que foi o impulsor que teve a Câmara dos Deputados para aprovar a execução do julgamento político. O INDERT (Instituto de Desenvolvimento Rural e da Terra) havia exigido que se destinasse a terras em Campos Morombi para a atividade agrária, porque não havia um estatuto legal de que era uma propriedade privada e estava ocupada ilegalmente. Na intervenção, houve um massacre por essas terras que culminou com a morte de 17 pessoas (campesinos e policiais). Lugo foi acusado de “idear” o massacre a seu benefício com o objetivo de gerar instabilidade interna e de ser ‘amigo’ dos criminosos. Aqui se observa uma clara condenação moral mais que baseada nos fatos, algo que lhe tira sustento à acusação. O impacto das mortes desnecessárias naquele junho de 2012 gerou um castigo social e, por sua vez, uma clara intenção do poder legislativo para dar essa voz à sociedade e encontrar um culpado que seja condenado, neste caso, Lugo. As evidências são catalogadas como “públicas”, baseadas no já difundido e visto, pelo que também não há um sustento jurídico para apoiar a causa.

O Procurador Oscar Tuma declarou no Libelo Acusatório que “todas as causais mencionadas acima são de pública notoriedade, motivo pelo qual não precisam ser testadas, conforme nosso ordenamento jurídico vigente”. No entanto, ao não ter apresentado provas para nenhuma das causas impostas a Lugo, há uma carência de sustento legal para verificar que o Presidente era culpado, algo que lhe pode tirar a probabilidade do acusado de verificar sua inocência. A falta de evidência provocou um atropelamento ao processo jurídico legal estabelecido pelo artigo 17 da Constituição Paraguaia, por ende, não considero que as causas estabelecidas estejam comprovadas o suficiente para julgar o Presidente pelo mau exercício de suas funções. Além disso, nas declarações dos cinco fiscais que redigiram as causas, não se especifica a lei ou o artigo da Constituição violado pelo Presidente, então, não se pode sustentar o mau exercício das funções, mas sim um julgamento com base numa condenação social.

É menester destacar a relação conflituosa entre Lugo e o Poder Legislativo desde que assumiu a Presidência em 2008. O presidente pertencia a um partido sem maioria tanto na Câmara dos Deputados como na Câmara dos Senadores, e ao ser [Paraguay] um sistema presidencial puro com equilíbrio de poderes, um desbalance de representação resultou em Lugo uma grande dificuldade na hora de governar. A oposição ocupou uma maioria no período 2008-2012, pelo que ambas as câmaras impuseram ao Poder Executivo certas barreiras para exercer seu poder.

Por se pouco, o artigo 17 da Constituição foi violado pelo Poder Legislativo em vários de suas incisos. O primeiro inciso violado foi em número 8, o qual data o fato de que a pessoa julgada tem direito a “que ofereça, pratique, controle e impugne testes”, as quais nem sequer foram apresentadas pelos fiscais a cargo da causa. Logo, o privou-se a Lugo de certos direitos, entre eles o que se estipula no inciso 7: “Toda pessoa tem direito à comunicação prévia e detalhada da imputação, bem como a dispor de cópias, meios e prazos indispensáveis para a preparação de sua defesa em livre comunicação”, algo que não foi cumprido, pois o acusado teve um prazo absurdamente acotado (uma noite) para estruturar sua defesa depois de serem apresentadas as acusações. Também foi violado o inciso mais importante de todos, o 1. Fernando Lugo a penas foi-lhe concedido duas horas para apresentar sua defesa, negando-lhe o direito de presumir sua inocência e por impossibitê-lo a verificar sua postura.

A repercussão internacional que teve este julgamento pode ser indício de exposição à ilegalidade do processo a Lugo. A Organização dos Estados Americanos (OEA) classificou a destituição como um golpe de Estado e imediatamente impuseram sanções ao novo governo supostamente ilegítimo. Além disso, o Paraguai foi suspenso de UNASUR até que se dessem eleições democráticas em que o povo escolhesse limpamente o seu governante. Faltava menos de um ano para que o vice-presidente (que assumiu após a destituição) termine o seu mandato em abril de 2013. Foi criado um Grupo de Alto Nível, com o objectivo de acompanhar a situação interna do país. Por último, o Paraguai foi suspenso também do MERCOSUL, embora tenha sido uma decisão muito politizada devido à estratégia de alguns países com governos de esquerda que solicitaram o ingresso da Venezuela como membro do organismo.

Igualmente, faço alusão aos erros da administração de Lugo que puderam ter sido também indício de um mau desempenho e ter despertado o descontentamento no Poder Legislativo. Cada clarificação que disto da minha opinião pessoal o mais possível, já que me baseou no artigo 17.o da Constituição para explicar os meus argumentos pelos quais o processo realizado não foi legítimo e foi realmente um golpe institucional. Fernando Lugo teve várias falácias durante sua gestão, como qualquer presidente. A sociedade acusou-o de não cumprir suas promessas eleitorais, de ter ‘atropellado’ aos setores proprietários e aos poderosos empresários, ter impedido o desenvolvimento econômico do país, nem executado políticas redistributivas de qualidade (cujo erro poderia ter sido uma causa indireta do massacre de Curuguaty), ter cometido erros estratégicos que provocaram a homogenização do Partido Colorado e eventualmente tê-lo posto em sua própria contra. Embora estas possam ser causais de um mau desempenho da presidência, não houve evidências apresentadas durante o julgamento, e o próprio Poder Legislativo violou o artigo 17 da Constituição Paraguaia, sendo que o processo não foi realizado como o estipula a lei suprema.

As décadas de 2000’ e 2010’ tiveram um contexto internacional concentrado no combate ao terrorismo, e a América Latina caracterizou-se por uma ascensão de governos populistas de esquerda e um subsequente despertar e descontentamento pela direita (como já mencionado, a rejeição à ola rosa). No Paraguai, a destituição de Fernando Lugo pode ser caracterizada como um ‘Golpe Blando’ ou um ‘Neo-golpismo’. Um “Golpe Blando” é uma iniciativa que tem o propósito de provocar o desgaste político de governos de caráter popular para forçar algum tipo de saída “institucional” sob a tutela desses poderes fácticos. Uma nova “ola golpista” caracterizou essa época na América Latina, caracterizada pelo autoritarismo, particularmente de direita. Os dois casos que avisaram a região foram a destituição de Zelaya em Honduras (2009) e o julgamento político a Lugo, cuja sistematização chamou a atenção do mundo quando desstituiram Dilma Rousseff no Brasil (2016). Estes “golpes” não têm as características próprias dos golpes do século XX da América Latina, que tiveram um caráter cívico militar e carregado de violência e usurpação direta do poder. Em vez disso, os golpes institucionais do século XXI têm a estratégia de buscar circunstâncias mais ou menos legais para chegar ao poder, removendo o Presidente da única maneira válida em um presidencialismo, o julgamento político.

É comprovado que em vários países os setores conservadores (como o Partido Colorado) são incapazes de conviver e co-existir com o progressista, cujas políticas econômicas são muitas vezes muito opostas à direita. Fernando Lugo teve uma vitória eleitoral quase esmagada, tirando ao Partido Colorado a continuidade no poder que já datava há quase vinte anos. O benefício econômico desses setores, então, foi interrompido pela chegada de Lugo à presidência, e suas políticas tinham orientação progressista e em favorecimento dos setores populares. A evidência apresentada no julgamento pôde ser extraída dos meios de comunicação, pois eram controlados pelos setores econômicos mais poderosos, que queriam chegar ao poder destituindo o presidente. Fernando Lugo entrava a hegemonia de guileiras empresariais, que aumentariam seu poder se se progredisse a nível tecnológico e produtivo, algo que com este mandato não estava acontecendo.

Também, pode-se considerar que foi realizado também um “neo-golpismo” ou “golpe de Estado constitucional” no caso do Paraguai, uma modalidade formalmente menos virulenta, encabeçada por civis (com suporte implícito ou cumplicidade explicita dos militares), que pretende violar a constituição, mas preservando certa institucionalidade. Em outras palavras, intencionalmente setores da direita paraguaia (ou simplesmente anti-progresistas) provocaram condições para que Lugo seja visto como o causador da instabilidade social vivida em 2012, embora aquilo implicasse a violação da Constituição. Lugo pôde não ter exercido uma interferência direta sobre as situações das quais o acusa, fator que é explicado pela ausência de evidência válida apresentada pelos fiscais no desenvolvimento do julgamento.

Em suma, a direita paraguaia e o Partido Colorado, ansiosos por poder e com ressentimento por não serem favorecidos da política econômica do Presidente, criaram uma espécie de ‘tormenta perfeita’ para que Lugo seja socialmente condenado, e seja a sociedade mesma que apoie a destituição do Presidente. Este factor social impulsionou um vazio de poder e uma ruptura de legitimidade para o Presidente.

Parece uma intenção sinistra de desejo de poder, uma incapacidade da oposição de coexistir ou esperar que o mandato de Lugo termine. A criação desta ‘tormenta perfeita’ a que fiz menção, foi intencionada pela oposição para deixar claro quem tem o poder e afastar ‘constitucionalmente’ o ‘outsider’ que quebrou com seus ininterrompidos vinte anos de mandatos. Foi esta opção "legal" à qual foram os setores da direita em vez de recorrer à força, sendo esta última condenada por instituições internacionais desde o final do século XX. No entanto, foi tão evidente a ilegalidade deste julgamento, que o condenou internacionalmente e foi qualificado como um golpe institucional, o novo fenômeno dos golpes moles que agora caracteriza a América Latina.

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lucia pereyra

lucia pereyra

Olá! Sou Lúcia, sou licenciada em Relações Internacionais, Magíster em Jornalismo e atualmente me encontro estudando uma especialização em Estudos Coreanos. Dedico-me à análise dos meios de comunicação das internas políticas dos partidos políticos da Cidade de Buenos Aires, onde me especializo em monitoramento de notícias e análise da percepção pública e jornalística. Anteriormente, fui passante como jornalista na seção Política da Nação e pesquisadora no CESIUB sobre Ásia e Oceania

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