08/04/2024 - Política e Sociedade

Impostos, escravos e oportunidades à margem da lei

Por marcos pascis

Impostos, escravos e oportunidades à margem da lei

A tributação é um elemento necessário para a manutenção das instituições do Estado, sem a extração de receitas não seria possível suportar a complexa teia do monopólio da violência, o atributo essencial do Estado enquanto conceito. No entanto, pode argumentar-se que a presença do Estado através da presença direta de burocratas é imperativa para uma cobrança óptima dos impostos, e a ausência de uma burocracia profissional, em favor de um governo indireto ou de funcionários com incentivos ao clientelismo, resulta em amplas margens de ação à margem da lei.

Existem milhares de exemplos de ilegalidade, encorajados por impostos elevados em zonas controladas. Um exemplo disso é o afluxo de escravos ao Rio da Prata nos séculos XVII e XVIII, quando os comerciantes viram oportunidades na falta de controlo da coroa espanhola sobre o porto de Buenos Aires, por oposição ao porto de Lima, o epicentro do Vice-Reino do Peru. Segundo vários estudos, 80 por cento do comércio do vice-reinado passava pelo porto de Lima entre os séculos XVI e XVII, razão pela qual foram introduzidos novos tipos de tributação, como o imposto sobre o papel selado em 1640, e as autoridades vice-reais aumentaram a pressão fiscal, em grande parte para pagar remessas destinadas a manter a política dinástica da coroa na metrópole (Klein, 1994). O quase monopólio do comércio no porto de Lima traduziu-se num aumento da tributação para os mercadores dispostos a descarregar os seus produtos, razão pela qual houve fortes incentivos para procurar portos onde entrar e exportar mercadorias sem o controlo do Estado. O porto de Buenos Aires era ideal para esse efeito, como se pode ver pela drástica queda nos cofres de Lima, no gráfico extraído de Arrigo Amadori (2012).

Estima-se que, entre o século VI e o presente, entre 11 e 18 milhões de escravos se destinaram aos mercados do Médio Oriente (Gakunzi, 2018), e que precisamente 12.521.337 escravos provenientes de África chegaram às costas americanas entre os séculos XVI e XIX. A necessidade de mão de obra gerou as suas próprias dinâmicas em ambos os lados do Atlântico. Em África, diferentes tribos costeiras entraram em contacto com enclaves europeus no litoral para trocar escravos por armas, que, por sua vez, eram utilizadas para capturar indivíduos de outras tribos com quem entravam em guerra. Os comerciantes compravam aqueles que, se fossem óptimos, poderiam ser revendidos como escravos na América. Um mercado, sem dúvida menor que o do Brasil atual, era o Rio da Prata, e um dos principais compradores de escravos do Brasil eram os jesuítas do norte da atual Argentina e do sul do atual Paraguai.

Desde a sua segunda fundação, em 1580, por Juan de Garay, Buenos Aires foi uma rota alternativa ao porto oficial de Lima para o comércio com Espanha. Isto significava que muitos produtos de cidades como Córdoba, Tucumán e Potosí eram canalizados através do porto da cidade e outros do Brasil, incluindo escravos, mas também géneros alimentícios para a subsistência da cidade que, devido à sua população, não exigia muito.

Por exemplo, Crespi (2001) refere que, em 1590, sete companhias de escravos saíram da cidade para Angola para abastecer o mercado. Esta situação era inaceitável para os mercadores monopolistas de Lima que, perante esta concorrência, se queixaram à coroa, o que resultou no encerramento oficial - a menos que tivessem uma licença real - do comércio no porto de Buenos Aires em 1594. No entanto, para evitar o despovoamento e impedir que outras potências pudessem entrar livremente no Alto Peru, "seria necessário que viessem todos os anos a esta cidade até duas naus de tamanho médio, despachadas daquela Casa [de Contratación em Sevilha], e que nelas se transportassem os bens e coisas necessárias". No entanto, estas remessas eram insuficientes, sobretudo no caso do mercado de escravos, onde muitos mercadores tinham investido somas consideráveis de dinheiro para levar a cabo as suas operações. Além disso, o mercado de escravos era muito procurado porque os escravos eram mais baratos do que os vendidos pelos comerciantes de Lima e de regiões como Potosí, onde a necessidade de mão de obra aumentava rapidamente. Esta situação levou ao florescimento de formas ilegais de abastecimento, que eram toleradas e mesmo praticadas pelas autoridades, em parte porque, para além de serem um negócio lucrativo, faziam parte do quadro moral do Antigo Regime. No contexto do "pacto" entre súbditos e senhores, considerava-se que uma lei podia ser ignorada se não fosse entendida como justa (Veras, 2007).

Para a entrada de escravos no porto interdito eram utilizadas várias técnicas, em maior escala do que os meios legais, como os alvarás e as "licenças negras"; os navios aportavam em praias afastadas do porto principal e não vigiadas, levando depois as suas mercadorias para o centro comercial. Também eram comuns as "chegadas", que consistiam em navios vindos de diferentes lugares, principalmente do porto português de Colónia de Sacramento, que chegavam ao porto de Buenos Aires em paragens de emergência, como avarias ou acidentes, e, no tempo que demoravam a repará-los, desembarcavam a mercadoria (Prado, 2018). Na maioria das vezes, era mais rentável para a coroa apreender os escravos com o acordo dos comerciantes e depois leiloá-los a um preço até quatro vezes inferior ao do resto dos mercados da América espanhola, e também "manifestar" os escravos comprados ilegalmente, declarando-os e pagando os direitos correspondentes. Como se pode ver num inventário de um ano "bastante normal" - 1625 - segundo Mörner (1968), do inventário total da cidade de 19.551 pesos, 7.926 - mais 967 - entraram por manifestações, 1.887 pesos por apreensões e 3.995 por "licenças" e outros meios legais.

Através do contrabando e das chegadas oficiais, entre os anos da proibição do comércio e 1767, chegaram ao porto de Buenos Aires 48.183 escravos em 179 navios vindos diretamente das costas africanas e 10.246 em 188 navios através do tráfico intra-americano. No entanto, a realidade é que poucos deles permaneceram na cidade, mas dirigiram-se para o interior da região através de diferentes rotas comerciais, em direção à província do Chile, à província do Paraguai e ao Alto Peru (Contarino Sparta, 2011). Havia duas rotas que tinham ligação com as diferentes missões da Companhia de Jesus, ambas subindo o rio Paraná e terminando em Assunção. A primeira era maioritariamente terrestre e podia ter mais de 1.000 km de extensão se fosse até Lima. A segunda começava em Sacramento, passava por Buenos Aires e, a partir daí, atravessava o rio para norte e, apesar de implicar mais infra-estruturas, pois tinham de atravessar o Rio da Prata, a colónia portuguesa era um local seguro para abastecimento e descanso.

Referências:

Contarino Sparta, L. (2011). "Africanos na Argentina: uma visibilidade complexa". XIII Congreso Internacional de ALADAA (pp. 4-6). Bogotá: Associação Latino-Americana de Estudos Asiáticos e Africanos.

Crespi, L. (2001). "Comercio de esclavos en el rio de la plata. en r. c. gómez, rutas de la esclavitud en África y América latina" (pp. 102, 109). Editorial Universidad de Costa Rica.

Gakunzi, D. (2018) "O comércio de escravos árabe-muçulmano: levantando o tabu". Vol. 29, No. ¾, Revista de Estudos Políticos Judaicos.

Klein, H. (1994). "Fiscalidad real y gastos de gobierno: El virreinato del Perú, 1680-1809", No. 66, Serie de Historia 12; Lima: Instituto de Estudios Peruanos.

Mörner, M. (1968). Cap. V e Material estatístico. Em M. Mörner, Actividades Políticas Económicas Jesuitas En Río De La Plata (pp. 154-158 e 205). Buenos Aires: Biblioteca Argentina de historia y política.

Prado (2018). Interação trans-imperial e o Rio de la Plata como fronteira atlântica. Oxford University Press Danna Levin e Cynthia Radding, eds. 4.

Veras, M. P. (janeiro-junho de 2007). Comportamentos à margem da lei: contrabando e sociedade na Buenos Aires do século XVII. Historia Crítica (33), 162, 173.

Viñuales, Graciela (2007). Missões jesuíticas de guaranis (Argentina, Paraguai, Brasil). Apuntes: Revista de Estudos do Património Cultural - Revista de Estudos do Património Cultural. 20. 108-125.

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marcos pascis

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Olá, meu nome é Marcos, sou historiador e docente, Magister em pesquisa histórica pela Universidade de San Andrés. Interessado nas ideias políticas, nas trocas culturais e políticas públicas.

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