Com o retorno da democracia, começou-se a gestar na Argentina a iniciativa política tendente a reformar a Constituição Nacional vigente. Nesse sentido, após repetidas tentativas de desestabilização democrática durante o governo de Raúl Ricardo Alfonsín (1983-1989), o Partido Justiçalista, liderado pelo então presidente Carlos Saul Menem (1989-1999) e a União Cívica Radical, em cabeça do já mencionado Alfonsín, concluíram o Pacto de Oliveiras e procedeu à reforma constitucional mais importante da história nacional desde 1949 (reforma peronista da escola do constitucionalismo social).
Esta reforma trouxe numerosas mudanças: a constitucionalização da defesa do consumidor (art. 43), a incorporação de tratados internacionais sobre direitos humanos com hierarquia constitucional (art. 75 inc. 22), a redução dos mandatos presidenciais a 4 anos com possibilidade de relecção (art. 90), a incorporação do Chefe de Gabinete de Ministros (art. 100), entre outros.
No entanto, esta considerável reforma do sistema político argentino trouxe consigo também a outorga à Cidade de Buenos Aires, então a denominada "Capital Federal", o caráter de Ciudad Autónoma. Mediante a redação do art.129 se faz entrega à Cidade de Buenos Aires - por parte do Governo Federal - de faculdades próprias de jurisdição, legislação e a possibilidade de seus habitantes de escolher seus representantes, tanto para o Congresso Nacional quanto para o Poder Executivo da própria Cidade.
Note-se que, na sequência de que nossa Constituição originária foi ditada com o acordo das Províncias Unidas do Rio da Prata (nome oficial válido para se referir à nossa nação conforme ao art. 35 da Constituição Nacional), todas as províncias conservam os poderes não delegados ao Governo Federal através da Carta Magna. Ou seja, aquilo que não é expressamente delegado pelas províncias ao Estado Nacional, mantém-se sob o poder dos governos locais.
Situação essa que difere daquela estabelecida para a Cidade de Buenos Aires. Embora seja concedida autonomia, também se assegura ao Estado Nacional o uso da mesma em tanto capital federal e, em razão de que é o Estado Nacional quem lhe faz entrega à Cidade do território e não vice-versa, a Cidade Autónoma de Buenos Aires só possui os poderes expressamente delegados na Carta Magna, ao contrário do resto das províncias.
Este quibre político gerou determinados conflitos em matéria de transmissão dos poderes desde o Poder Executivo Nacional à Cidade Autónoma de Buenos Aires.
O primeiro conflito básico que, após 28 anos não foi resolvido, é o ditado dos códigos processuais de direito comum (laboral, comercial, civil, penal ordinário) pela legislatura da Cidade de Buenos Aires. Isso tem a ver com um problema central que é a não transferência das jurisdições locais que julgam sobre direito comum desde o Supremo Tribunal de Justiça da Nação para o Tribunal Superior de Justiça da Cidade de Buenos Aires, os chamados "Foros Nacionais".
Qual é a transferência política desta transferência?
Embora em matéria política, as causas que tramitam nesses esros não costumam ter maior relevância pública, com certas excepções (a falência do Correio Argentino, por exemplo), a realidade é que a transferência não é conveniente para o Governo da Cidade Autónoma de Buenos Aires toda vez que teria que começar a financiar o funcionamento judicial de mais de 250 tribunais e dezenas de Salas de Câmaras de Apelações, assim também não é para o Governo Nacional, isso em tanto a transferência para a Cidade retira poder de fogo em matéria judicial.Além disso, os juízes e fiscais nacionais vêem com maus olhos ser "degradados" a juízes e fiscais locais da Cidade Autónoma de Buenos Aires.
Por último, e não menos importante, a Inspeção Geral de Justiça que inscreve as pessoas jurídicas com domicílio social na Cidade, mantém-se nas mãos do Ministério da Justiça da Nação. Ou seja, o ente que registra 90% das empresas constituídas como sociedades na Argentina, mantém-se nas mãos do Governo Nacional de turno, ditando as disposições regulamentares que corresponderiam à legislatura e ao poder executivo da Cidade de Buenos Aires.
Agora, os únicos reféns desta disputa entre a Nação e a Cidade - que se dá sem importar a cor política de turno - são as províncias que seguem solventando um Poder Judiciário Ordinário local, cuja transferência foi ordenado por manda constitucional há 28 anos e cujos casos são de jurisdição exclusiva para o território da Cidade de Buenos Aires.
Em um reconhecido acórdão proferido pelo Supremo Tribunal em 2021 sobre o poder da CABA para não reconhecer decretos em matéria educacional por parte do PEN, o Supremo Tribunal fez referência a esta dívida política que já leva quase 3 décadas, mas omitiu a sua entrada em vigor.
Mencionou a Cidade de Buenos Aires como uma "cidade constitucional federal" e concedeu aos juízes nacionais com assento na Capital Federal menor faixa que os juízes federais. Agora, muitos anos passaram e nem a Suprema Corte da Nação, nem a Cidade Autónoma de Buenos Aires, nem o Governo Federal, cada um com seus motivos políticos, tomam ação para cumprir o disposto no artigo 129 da Constituição Nacional. Pois não se pode pretender, por parte da Cidade, uma completa autonomia política sem querer assumir os custos econômicos que implica aquilo em matéria de jurisdição, transporte (tema coletivo), entre outros.
Custos os quais se encontram sendo solventados mediante os tributos do resto do país. Ou seja, parte dos impostos nacionais, arrecadados em todos os pontos do país estão indo hoje inconstitucionalmente, ao financiamento da justiça ordinária da Cidade Autónoma de Buenos Aires e aos subsídios em seu transporte público. Ao financiamento da justiça da Cidade mais rica do país.
É altura de cumprir o disposto com a Carta Magna e terminar, de uma vez por todas, com esta dívida moral e política que já leva quase 30 anos.
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