08/04/2024 - politica-e-sociedade

A METAMORFOSE DO TRÁFICO DE DROGA: DO "CARTEL" CLÁSSICO AOS NARCO-ESTADOS

Por Jose Daniel Salinardi

A METAMORFOSE DO TRÁFICO DE DROGA: DO "CARTEL" CLÁSSICO AOS NARCO-ESTADOS

HUGO ACHA. CENTRO PARA UMA SOCIEDADE LIVRE E SEGURA (WASHINGTON D.C.)

As histórias, reais ou fictícias, sobre criminosos sempre foram um bom negócio para a indústria cinematográfica de Hollywood. Há filmes policiais ou de ação cujas personagens principais geraram tanta empatia entre os cinéfilos que se tornaram verdadeiros ícones do género.

O que é surpreendente nestes filmes é o facto de muitos deles não pertencerem precisamente aos "bons da fita". A brilhante caraterização de Al Capone por Robert De Niro em "Os Intocáveis" (1987), de Brian De Palma; John Dillinger, o romântico ladrão de bancos interpretado por Johnny Depp em "Inimigos Públicos", realizado por Michael Mann (2009); Barry Seal (Tom Cruise) interpreta em ¨ American Made ¨ (2017) o corrupto piloto de avião comercial contratado pela CIA para uma missão secreta que terminou com a ascensão do Cartel de Medellín liderado por Pablo Escobar Gavíria; são alguns exemplos do que dizemos. Um pouco mais atrás no tempo, em 1967, a dupla de actores Faye Dunaway e Warren Beatty deu vida a Bonnie Parker e Clyde Barrow, respetivamente, os líderes de um bando de ladrões que conquistou tantos fãs no cinema como na vida real. Todos eles têm uma coisa em comum: existiram de facto.

Mas se há um filme desta categoria que se tornou numa espécie de filme de culto, esse filme é Scarface. A história de um cubano exilado nos Estados Unidos que acaba por se tornar o maior traficante de cocaína do estado da Florida. O filme magistralmente protagonizado por Al Pacino no papel de "Tony Montana", escrito por Oliver Stone e realizado por Brian De Palma, retrata a violenta competição entre os gangues de droga que operavam nos Estados Unidos durante a década de 1980, abastecidos sobretudo com cocaína proveniente de países como a Colômbia, o Peru e a Bolívia.

Os cartéis de droga tinham feito da cidade de Miami o seu principal centro de operações e aí lutavam entre si metro a metro por território e negócios. Uma atividade cresceu exponencialmente em consequência das grandes somas de dinheiro que o negócio da droga movimentava: surgiram dezenas de pequenos bancos locais cujo principal objetivo, obviamente não declarado, era o "branqueamento" ou "lavagem" dos milhões de lucros da droga. As drogas trouxeram os bancos, e os bancos converteram o dinheiro sujo em investimentos, principalmente no sector imobiliário, o que deu nova vida à cidade. Era a era da "Art Deco", da ascensão da Ocean Drive em South Beach e das empresas sediadas na Florida, mas cuja sede se encontrava na caixa de correio de um banco situado numa qualquer ilha do Mar das Caraíbas, tornando impossível saber quem eram os verdadeiros proprietários. Uma caixa de correio que devia ser do tamanho de um prédio, porque em alguns casos era partilhada por dezenas de empresas ¨ de pape l¨.

Cocaína, lavagem de dinheiro, investimentos milionários e o desenvolvimento de uma sofisticada engenharia financeira que permitia escapar aos controlos das agências antidroga de qualquer país. Mas tudo mudou para pior, e não apenas devido aos danos que o tráfico de droga representa para a saúde das pessoas e para as economias nacionais.

Hugo Acha é um dos maiores especialistas internacionais em criminalidade transnacional, narcoterrorismo e branqueamento de capitais, com sede em Washington D.C., investigador especializado do ¨ CENTER FOR A FREE SECURE SOCIETY ¨ e Diretor de ¨ HUMAN RIGHTS FOR CUBA ¨. Na primeira semana de abril, visitará a Argentina, onde foi especialmente convidado para fazer uma apresentação sobre a sua especialidade. Numa conversa recente que tivemos, apresentou-nos algumas conclusões que nos ajudam a compreender a forma como os grupos de traficantes de droga sofreram mutações a nível mundial e quais os actores que se tornaram "parceiros" dos criminosos. A violência da droga em Rosário e a utilização das forças armadas na luta contra os narcotraficantes, dois temas que estiveram presentes no nosso encontro com uma visão muito interessante de Hugo Acha sobre o êxito ou o fracasso da estratégia que o governo de Javier Milei pretende levar a cabo nesta matéria. Seguem-se os destaques.

Como se pode resumir o processo pelo qual os grupos de traficantes de droga passaram da organização em "cartéis" para a formação de verdadeiros narco-estados?

Hugo Acha: ¨ O crime organizado transnacional ultrapassou a fase em que se contentava em coexistir com o Estado, interagindo com ele através de subornos, financiamento de partidos políticos ou branqueamento de capitais. Os adversários do Ocidente foram os que melhor compreenderam este processo e estão a ajudar os traficantes de droga a tornarem-se "o Estado per se". A China, o Irão, a Rússia, a Venezuela e Cuba, por exemplo, colaboram com estes bandos que procuram formar verdadeiras corporações criminosas, para os ajudar a controlar as estruturas e as instituições político-partidárias até se tornarem parte do próprio Estado. As associações entre narcotraficantes, traficantes de seres humanos, contrabandistas de armas, terroristas e branqueadores de capitais estão a tornar-se importantes para além das fronteiras e constituem hoje o verdadeiro desafio que o Ocidente enfrenta, não só na perspetiva do suborno e da corrupção, mas sobretudo na perspetiva tradicional das agências de segurança e dos sistemas judiciais ¨.

A ideologia dos governos desempenha algum papel no desenvolvimento deste fenómeno? Por exemplo, os governos populistas ou de esquerda são mais propensos à infiltração do tráfico de droga nos seus partidos políticos e instituições?

Hugo Acha: ¨ Não do ponto de vista do narcotráfico em si, enquanto atividade ilícita capaz de seduzir uma pessoa ideologicamente de esquerda ou de direita, devido à possibilidade de obter lucros significativos. O fenómeno da tomada do Estado pelo crime organizado, em que o tráfico de droga é visto como uma base logística para a obtenção e permanência no poder, não como um negócio eventual de mero lucro, em que a corrupção é um método (lembrem-se do caso Odebrecht/¨ Lavajato ¨ como um caso emblemático deste processo), SIM, infelizmente a esquerda tem-se mostrado funcional à expansão do tráfico de droga, desde a condescendência com países como Cuba, Venezuela, Nicarágua, organizações populares como as da Argentina, a militância social no Brasil, os partidos políticos argentinos que têm sido totalmente funcionais à penetração territorial do país ou os ataques de Andrés Manuel López Obrador à imprensa para que não tornem públicos os seus acordos com as organizações ligadas ao narcotráfico no México.¨

Qual é a sua opinião sobre o que está a acontecer na cidade argentina de Rosário, na província de Santa Fé, e sobre a decisão do Presidente Javier Milei de envolver as forças armadas na luta contra o tráfico de droga?

Hugo Acha: ¨ Temos de compreender que a lógica do crime organizado atualmente já não é local, departamental ou provincial, nem sequer nacional. É transnacional. Rosário é um caso típico daquilo a que chamamos a "geopolítica do tráfico de droga". Situa-se numa das rotas estrategicamente mais importantes da logística financeira mundial. Numa conversa com um alto diplomata da NATO em Bruxelas, ele disse-me que, nos últimos anos, o fluxo de cocaína para a Europa através do porto de Antuérpia triplicou. Mais de 90% provinha do fluxo de tráfico através da via navegável Paraguai/Paraná. As drogas abasteciam actores nocivos (principalmente narcoterroristas), o que torna essencial uma aliança transnacional entre as agências de segurança e de informação. Rosário possui uma localização de indiscutível importância estratégica que beneficia, por exemplo, a Rússia, que através de suas agências de inteligência, aliados e "proxies" consegue burlar as sanções pela invasão da Ucrânia; beneficia o Hezbollah, que financiou um recente atentado frustrado no Brasil com dinheiro do narcotráfico gerado na Tríplice Fronteira; beneficia o Hamas e o Irã, que financiaram um recente atentado frustrado no Brasil com dinheiro do narcotráfico gerado na Tríplice Fronteira; e beneficia o Hamas e o Irã, que financiaram um recente atentado frustrado no Brasil com dinheiro do narcotráfico gerado na Tríplice Fronteira; Beneficia o Hamas e o Irão, que já não têm de se preocupar em obter financiamento e operar a nível mundial; beneficia Cuba, que triangula recursos extraordinários do tráfico de droga com o tráfico de seres humanos e o branqueamento de capitais; beneficia a China, porque se analisarmos em pormenor a curva de crescimento do tráfico de fentanil, veremos que, paralelamente, houve um crescimento constante do consumo de cocaína na última década. Por um lado, Rosário encontra-se num "lugar privilegiado". Por outro lado, houve uma cumplicidade terrível do Estado na Argentina, as regiões foram entregues ao controlo de indivíduos e organizações totalmente ligados ao narcotráfico. Será que o recurso às forças armadas é suficiente para mudar a situação? Infelizmente não. Face a um inimigo que adopta uma abordagem global, as armas visíveis são os bandos (Tren de Aragua, Comando da Capital, Comando Vermelho), mas não o inimigo no seu conjunto, porque por detrás deles estão os governos. Portanto, embora o destacamento militar possa ser útil, é necessário ter um papel integral. É um grande desafio para o governo de Javier Milei como enfrentar o problema, mas não se pode enfrentar um fenómeno transnacional como se fosse local, sem uma estratégia que envolva as agências de segurança, polícia e inteligência dos países onde o inimigo actua. Rosário não é a doença, é um sintoma de um processo que permeia as favelas da grande Buenos Aires, permeia o território nacional, permeia a relação com uma elite política que se acostumou a se aliar e se tornar parte do problema.

Apesar da onda de violência, a América Latina não promoveu uma estratégia comum para enfrentar o narcotráfico devido às complexidades políticas e sociais de cada país, embora alguns governos (México, El Salvador, Colômbia e Equador) tenham recorrido à opção militar, e outros, como a Argentina, estejam a considerar fazê-lo. Esta alternativa, segundo os especialistas, nem sempre é eficaz.

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Jose Daniel Salinardi

Jose Daniel Salinardi

Jose Daniel Salinardi es Contador Publico Egresado de la Facultad De Ciencias Económicas de la Universidad de Buenos Aires.

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