03/10/2024 - politica-e-sociedade

Privatização da Aerolíneas Argentinas: solução financeira ou perda de soberania?

Por Uriel Manzo Diaz

 Privatização da Aerolíneas Argentinas: solução financeira ou perda de soberania?

Aerolíneas Argentinas: a ascensão e a queda de um símbolo nacional

O dia 27 de setembro de 2024 poderá ser recordado como um ponto de viragem na política económica da Argentina. Num comunicado oficial, o Governo Nacional anunciou que iria avançar com a privatização da Aerolíneas Argentinas, declarando a empresa uma "Empresa Pública Sujeita a Privatização" no âmbito da Lei n.º 23.696. Este anúncio formaliza o que muitos consideram ser uma decisão há muito adiada em face de uma perspetiva financeira insustentável. Mas será esta uma solução inevitável ou o início de um erro que vai custar caro?

A história da Aerolíneas: da expropriação à privatização

A Aerolíneas Argentinas foi restabelecida em 2008 pelo governo de Cristina Fernández de Kirchner, sob o pretexto de "recuperar a soberania nos céus". O argumento oficial era que a companhia aérea, nas mãos da espanhola Marsans, estava a ser esvaziada e que o Estado devia intervir para a salvar. Assim, a expropriação da empresa foi apresentada como um ato patriótico, como uma reconquista do que era nosso.

Desde então, a Aerolíneas continua a acumular prejuízos. No comunicado oficial de 2024, afirma-se que "as contribuições do Estado Nacional para cobrir o seu défice já ultrapassam os 8.000 milhões de dólares". Por outras palavras, o Estado teve de injetar esta soma gigantesca de dinheiro para manter a empresa à tona durante os últimos 15 anos, apesar de a empresa nunca ter sido rentável.

O mais alarmante é que o balanço negativo da empresa não é apenas uma questão de números, mas também de ineficiência operacional. De acordo com o comunicado, a Aerolíneas Argentinas tem "aproximadamente 15 pilotos por aeronave operacional", um número pouco comum que não se repete em nenhuma outra empresa do sector. Além disso, os salários dos pilotos variam "entre 3 e 10 milhões de pesos por mês", independentemente das horas voadas. Entretanto, os bónus são pagos em dólares e as transferências, assim como os bilhetes para a família e amigos, fazem parte dos privilégios de um sector sindicalizado que, segundo o governo, fez da manutenção dos seus benefícios a sua única prioridade.


O custo social: uma despesa insustentável?

O contexto económico em que se insere este anúncio não pode ser ignorado. A Argentina atravessa uma crise socioeconómica sem precedentes, com 52,9% da população abaixo do limiar da pobreza e 66% das crianças em situação de vulnerabilidade. Neste cenário, manter uma companhia aérea com prejuízos na ordem dos milhões parece, aos olhos do governo, um ato de irresponsabilidade.

A declaração do Presidente da República é contundente: "É inaceitável que o Estado Nacional continue a financiar o défice e os privilégios de alguns com os impostos daqueles que não conseguem fazer face às despesas". Por outras palavras, a privatização da Aerolíneas Argentinas não é apenas uma questão de eficiência económica, mas também de justiça social. O governo argumenta que cada peso gasto na manutenção da companhia aérea é um peso que poderia ser gasto em programas sociais, na educação ou na saúde, sectores que, num país com mais de metade da população a viver na pobreza, precisam desesperadamente desses recursos.

No entanto, esse raciocínio, por mais pragmático que seja, não convence a todos. Para muitos, a Aerolíneas Argentinas é mais do que uma empresa deficitária: é um símbolo da soberania nacional. Num país com um historial de privatizações controversas, a entrega do controlo da companhia aérea de bandeira a privados é, para alguns sectores, um atentado ao património público.


As greves afectaram milhares de utentes. Foto: Fernando de la Orden Image

Sindicato dos pilotos e poder sindical

Uma das críticas mais severas à Aerolíneas Argentinas é dirigida ao sindicato dos pilotos, cujos membros se beneficiaram de condições de trabalho que, segundo o governo, não têm lugar em nenhuma outra companhia aérea do mundo. A direção do sindicato tem sido historicamente um dos maiores obstáculos a qualquer tentativa de reforma da empresa. Salários exorbitantes, bónus em dólares e benefícios como transferências e bilhetes gratuitos para a família e amigos transformaram a empresa numa acumulação de privilégios.

O comunicado do Governo salienta que o conflito com os sindicatos tem sido uma barreira intransponível a qualquer tentativa de tornar a empresa rentável. Ao mencionar que "a empresa tem aproximadamente 15 pilotos por aeronave operacional", a mensagem é clara: a estrutura interna da Aerolíneas é inchada, desproporcional e insustentável num contexto de concorrência global. Enquanto as companhias aéreas privadas conseguem operar com uma margem mínima de pessoal e maximizar a eficiência dos seus recursos, a Aerolíneas Argentinas parece ter-se transformado numa máquina de lucros para poucos, à custa do Estado e, portanto, dos contribuintes.

Pablo Biró, Secretário Geral da APLA

Privatização ou desmantelamento?

A privatização da Aerolíneas Argentinas abre um debate sobre o papel do Estado na economia. Para alguns sectores, trata-se de uma medida necessária para libertar o país de despesas insustentáveis. " A privatização é um passo fundamental no caminho para libertar o país de gastos insustentáveis", afirma o comunicado oficial. Para outros, porém, a medida representa um ataque direto à soberania da Argentina e à ideia de que certos serviços devem ser garantidos pelo Estado.

Os críticos argumentam que entregar a Aerolíneas Argentinas ao sector privado é abrir a porta a um processo de desmantelamento, no qual as rotas não rentáveis serão abandonadas e o serviço será concentrado apenas nas rotas que geram lucros. Se tal acontecer, muitas províncias do país poderão ficar sem ligações aéreas, o que afectaria seriamente o seu desenvolvimento económico e a sua integração com o resto do país.

Além disso, a privatização na Argentina tem uma história complicada. Durante a década de 1990, sob a presidência de Carlos Menem, muitas empresas estatais foram privatizadas no que foi visto por muitos como um processo corrupto que levou à perda de milhares de empregos. Embora o contexto atual seja diferente, as sombras dessas privatizações falhadas continuam a assombrar a opinião pública.


O Congresso e a batalha política

Embora o decreto presidencial já tenha sido emitido, a privatização da Aerolíneas Argentinas ainda precisa passar pelo Congresso Nacional, onde a medida será debatida nos próximos meses. O governo está confiante de que o projeto será aprovado com prioridade, conforme exigido pela Lei nº 23.696, mas é improvável que o bloco kirchnerista, que ainda tem peso significativo em ambas as câmaras, apoie o projeto.

Para o kirchnerismo, o restabelecimento da Aerolíneas em 2008 foi um dos pilares de seu legado, uma das bandeiras que eles orgulhosamente levantaram como símbolo de sua luta pela soberania nacional. Não é surpreendente, portanto, que os seus líderes vejam esta privatização como uma traição a esses ideais.


O futuro da Aerolíneas Argentinas

A privatização da Aerolíneas Argentinas é uma questão complexa, com implicações económicas, sociais e políticas. Por um lado, é evidente que a empresa, tal como funciona atualmente, é insustentável. Os défices milionários, o excesso de pessoal e os privilégios sindicais tornaram a companhia aérea um fardo impossível de sustentar no contexto de uma crise económica.

Por outro lado, a privatização não garante que estes problemas sejam resolvidos da melhor forma. A história das privatizações na Argentina é turbulenta e muitos temem que a entrega da Aerolineas ao sector privado resulte na perda de rotas essenciais para a conetividade do país e na redução de postos de trabalho.

O que é certo é que a Aerolineas, tal como funciona atualmente, é insustentável. A privatização pode ser uma solução financeiramente lógica, mas o seu sucesso dependerá da forma como for implementada. Com a discussão já nas mãos do Congresso, o futuro da empresa e do país está mais uma vez em jogo.


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Uriel Manzo Diaz

Uriel Manzo Diaz

Olá! Meu nome é Uriel Manzo Diaz, atualmente estou em processo de aprofundar meus conhecimentos em relações internacionais e ciências políticas, e planejo começar meus estudos nesses campos em 2026. Sou apaixonado por política, educação, cultura, livros e temas internacionais.

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