Fabián Calle para Poder & Dinero e FinGurú
Completando mais de dois anos da ofensiva russa sobre a Ucrânia, dois fatos pouco mencionados podem começar a ser discutidos. O primeiro, a dura reprimenda que o chefe da inteligência exterior, Sergei Naryshkin, recebeu de Vladimir Putin na encenação televisiva realizada no dia anterior ao início do ataque. Um Putin irritado intimou seu ministro a não deixar dúvidas sobre a conveniência de iniciar as operações militares. Foi apenas timidez em uma sessão televisionada? Ou essa ambiguidade do funcionário tinha por trás alguma informação ou análise que antecipavam que a incursão não seria uma vitória fácil que resultaria no colapso do governo ucraniano em no máximo três a quatro dias, como parecia estimar o presidente russo?
O outro aspecto a ser observado de perto foi o amplo consenso existente nesses últimos meses nos principais centros de pensamento estratégico do mundo, e até na própria Rússia, sobre a pouca probabilidade de uma ofensiva militar como a que estamos assistindo: com o uso de 200 mil soldados.
Os especialistas mais destacados em questões internacionais e geopolíticas, incluindo muitos que foram críticos contundentes sobre a verdadeira utilidade estratégica das guerras americanas no Afeganistão e no Iraque, não se cansaram de advertir que uma invasão massiva russa teria sérias consequências. Entre elas, tornar a Rússia economicamente mais dependente da China, além da possibilidade real de se envolver em uma situação de guerrilha e sabotagem, caso surgisse a vontade de combate de uma parte significativa dos ucranianos.
Como nos ensina o pensamento Realista das RI, desde o final do século XVIII, a força mais poderosa que impulsiona os Estados e seus povos é o nacionalismo, não as ideologias marxistas, liberais, anarquistas ou teológicas. Um proeminente Realista como J. Mearsheimer, que sempre enfatizou o agressivo e mau manejo que os EUA fizeram desde meados dos anos 90 na expansão da OTAN para o Leste, desaconselhavam uma operação nessa escala. Especialistas destacados em questões de defesa, insurgência e contrainsurgência, dos EUA e da Europa, não duvidavam da conveniência de a Rússia ficar presa no pântano ucraniano, e que isso resultaria em sérios custos humanos, econômicos e reputacionais. Aqueles mais especializados na grande geopolítica convocaram a evitar, tanto em Moscou quanto em Washington, uma situação de ruptura que afastasse definitivamente a Rússia do capitalismo ocidental e a deixasse refém do capitalismo de Estado da China. Um trago difícil de engolir para o nacionalismo russo. Toda uma paradoxa que uma guerra contra a Ucrânia para levantar bem alto o orgulho e o nacionalismo russo acabe facilitando a influência de Pequim sobre Moscou.
Não faltaram análises em que se via como um fator favorável à Rússia o pacifismo, pós-modernismo e pós-heroísmo de uma parte substancial dos países da União Europeia, especialmente de um gigante econômico como a Alemanha: com suas Forças Armadas com orçamento decrescente e baixo nível operacional, bem como cada vez mais dependente do gás russo. A decisão pública de Berlim de aumentar os gastos em Defesa e fornecer sofisticados foguetes antitanque e mísseis antiaéreos à Ucrânia é um claro exemplo nesse sentido. A própria França de Emmanuel Macron, vista por anos como um canal de diálogo e compreensão da Rússia, começou a mostrar seus dentes. As divergências entre os países da OTAN sobre como responder à Rússia - que se estendiam por anos - estão se reduzindo até quase desaparecer. Não por acaso, a OTAN decidiu expandir pela primeira vez sua força massiva de rápida mobilização de 40 mil soldados. Até as sempre prudentes e neutras (e armadas até os dentes) Suécia e Finlândia levantaram a voz contra Moscou. A Turquia de Erdogan, que nos últimos anos vinha causando dores de cabeça aos EUA e aos países europeus, mostrou uma firme postura de apoio diplomático e fornecimento de armamento sofisticado à Ucrânia.
Voltando ao princípio, é possível que Putin tenha visto coisas que nem seu Chefe de Inteligência externa viu, nem quase a totalidade das melhores mentes e centros de estudos internacionais do mundo em questões de RI e geopolítica. Se isso terminar com uma rendição e colapso da Ucrânia, Putin terá visto uma oportunidade única. Se os choques militares continuarem, talvez, a eterna sabedoria do realismo tenha sido mais uma vez ignorada por um decisor.
Fabián Carlos Calle
Mestre em Relações Internacionais, Universita di Bologna Itália; Mestre em Relações Internacionais, FLACSO.
Licenciado em Ciência Política pela Universidade de Buenos Aires, Especialização em Estratégia Econômica Internacional pela Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade de Buenos Aires, Mestre em Relações Internacionais na FLACSO, Mestre em Relações Internacionais pela Universita di Bologna, Especialização na National Defense University Washington DC, Candidato a Doutor em História na Universidade Torcuato Di Tella. Professor na Universidade Torcuato Di Tella, UCEMA, Universidade Católica Argentina, Universita di Bologna e Escola de Guerra Conjunta das Forças Armadas. Ex-analista do Estado-Maior Geral da Marinha, ex-Assessor do Ministro da Defesa Horacio Jaunarena, ex-investigador Sênior do CARI, ex-bolsista da Fundação Ford, ex-bolsista de Iniciação, Aperfeiçoamento e Pós-doutorado do CONICET. Atualmente é responsável pela área de Defesa da empresa Codesur e é assessor Editorial da Revista DEF e colunista em questões de segurança e Defesa do programa DEF TV. Além disso, é assessor no Ministério da Defesa desde maio de 2011 e do Grupo Bapro.
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