03/06/2025 - politica-e-sociedade

A crise boliviana se aprofunda e é uma ameaça à segurança regional.

Por Poder & Dinero

A crise boliviana se aprofunda e é uma ameaça à segurança regional.

Sérgio Berensztein para Poder & Dinero e FinGurú

“A Bolívia está se tornando no novo Afeganistão: um santuário do narcotráfico penetrado pelas redes globais do crime organizado, incluindo o terrorismo islâmico”. O especialista em temas de segurança regional não economiza adjetivos para descrever a gravidade da crise atual, que pode resultar em um colapso econômico e político com múltiplos riscos para os países vizinhos, incluindo a Argentina. Embora possa parecer exagerado, a combinação de um Estado fracassado, uma economia paralisada com uma dinâmica hiperinflacionária, escassez de dólares e produtos de primeira necessidade, tensões sociais em aumento e um vazio de poder alimentado pela incerteza eleitoral (as eleições presidenciais estão previstas para 17 de agosto e, se fosse necessária uma segunda volta, para 19 de outubro) é um ambiente ideal para encobrir células “adormecidas” do grupo terrorista libanês Hezbollah e da Guarda Revolucionária do Irã, país com o qual a Bolívia estabeleceu há tempo um acordo estratégico graças à identificação de Evo Morales (e tantos outros dirigentes chavistas da região) com o regime fundamentalista islâmico.

No contexto do debate que se impôs em nosso país a respeito dos papéis e prioridades dos serviços de inteligência e do deslocamento das FF.AA. no norte (primeiro o Plano Güemes na fronteira com a Bolívia, há dias o Plano Guazurari na fronteira com o Brasil), essa ameaça gera interrogações quanto à nossa capacidade de prevenir e reagir ao potencial desastre humanitário que os eventuais fluxos maciços de imigrantes que, voluntariamente ou não, abandonariam seu país se esse cenário se aprofundasse acarretariam.

A Bolívia experimentou na primeira década do século uma etapa de relativa bonança, especialmente nos primeiros anos de Morales, com Luis Arce como arquiteto da política econômica, alavancado pelos altos preços das matérias-primas. Hoje, essa lembrança fica muito longe. A produção de gás natural e petróleo, uma de suas principais fontes de renda, caiu 13% entre 2014 e 2023, e a contribuição do setor energético no PIB reduziu-se em 40% nos últimos anos. O déficit fiscal é alarmante: projeta-se em torno de quase 11% do PIB em 2025 e mais de 13% em 2026. Sem crédito externo (a dívida gira em torno de 98% do produto), recorre à emissão e, em consequência, entrou em uma dramática espiral inflacionária enquanto sua moeda doméstica se deprecia constantemente. Com um Banco Central carente de reservas, aprofunda-se a escassez de insumos básicos e veem-se filas imensas para conseguir combustível, enquanto no mercado informal a arbitrariedade de preços é implacável. A vida cotidiana se tornou uma odisséia de incerteza e perplexidade. Saberemos nós, argentinos, do que se trata.

No plano político, a implosão do MAS (Movimento ao Socialismo) pela feroz interna entre Morales e Arce (ambos ficaram fora da corrida presidencial) aumenta a incerteza quanto ao processo eleitoral. O ex-presidente, com um mandado de prisão vigente por tráfico de pessoas que embora tenha se originado durante o mandato de Jeanine Áñez, foi reavivado por este mesmo governo, decidiu refugiar-se na zona cocalera do Chapare para manter sua liberdade, onde é “custodiado” por seus militantes mais ferrenhos enquanto se desloca em veículos blindados pertencentes a Petróleos da Venezuela (os serviços de inteligência, assim como os cubanos, têm ampla presença no país). Radicalizado, qualificou de “inimigo” seu ex-vice-presidente Álvaro García Linera, que havia proposto unificar forças em torno de um candidato comum: o presidente do Senado, Andrónico Rodríguez. Arce, por sua parte, conseguiu ficar com o selo partidário do MAS. Mas sofreu um desgaste extraordinário: sua gestão tem apenas 10% de aprovação segundo uma pesquisa recente da Ipsos. Nesse contexto, Arce aspiraria a uma vaga como senador enquanto seu espaço apoiou Eduardo del Castillo, atual ministro do Interior, como candidato presidencial. Essa decisão enfureceu a facção leal a Evo, que agora sim impulsiona a candidatura de Rodríguez, que, por sua vez, teve dificuldades para se inscrever formalmente: sua aliança partidária improvisada não contaria com os requisitos necessários. Predominam as suspeitas de que o Poder Judiciário, muito influenciável pelos oficialismos de turno, está colocando obstáculos como consequência da pressão do governo de Arce. Segundo o Latinobarômetro, a confiança na economia (2%), nas FF.AA. (23%) e na polícia (16%) está em mínimos históricos e muito longe das médias da região. A desconexão entre a cidadania e o aparato estatal é total. As pesquisas eleitorais sugerem um cenário altamente fragmentado, imprevisível e volátil. As forças moderadas e de centro-direita carecem até agora de figuras convocantes.

Se faltava algo a esse combo explosivo é a penetracão do narcotráfico e das redes globais do crime organizado. Há muito tempo, a Bolívia é reconhecida como um dos principais produtores de folha de coca do mundo. Desde 2006, os EUA a consideram um país produtor de pasta base, cujos volumes teriam se multiplicado exponencialmente no último lustro. Pelo menos cinco altos funcionários de Morales, entre eles os diretores antidrogas René Sanabria e Maximiliano Dávila, acabaram presos depois de investigações da DEA. Em 2023, o candidato oficialista Del Castillo reconheceu que foram destruídos 27 laboratórios e mais de 1800 fábricas desde 2020, a maioria no Chapare, bastião de Morales. Mas esse funcionário estava supostamente conectado com Sebastián Marset, um dos criminosos mais procurados pela DEA, que fugiu da Bolívia em 2023. A presença dos mais importantes cartéis da região é reconhecida pelos principais especialistas em segurança e é um lugar comum em meios diplomáticos. Um dos chefes do PCC (Primeiro Comando Capital), a organização criminosa mais importante e sofisticada do Brasil, foi extraditado de forma expressa e sem o devido processo. Integrantes do Trem de Aragua utilizam a Bolívia como um santuário para “esfriar” (proteger) seus integrantes.

Pior ainda, ultimamente estreitaram-se as relações com o Hezbollah (o mesmo ocorre no Brasil e na Colômbia), que desempenha um papel vital na logística, especialmente no transporte de pasta base para a hidrovía, geralmente feito com aeronaves. Mais: foi detectada a presença da força de elite Quds da Guarda Revolucionária iraniana (segundo fontes de inteligência, foram identificados entre Venezuela e Bolívia entre 120 e 150 integrantes desse corpo). O governo argentino, em particular o Ministério da Segurança, está ciente da situação e alertou as autoridades bolivianas sobre a decisão de impedir, de forma taxativa, qualquer incursão no território nacional. Tanto o Ministério das Relações Exteriores quanto o Ministério da Defesa e os serviços de inteligência estão monitorando a evolução da crise, que pode aumentar nos próximos meses.

A Bolívia se tornou um “Estado falido”: perda do monopólio da violência, colapso institucional, corrupção rampante, uma economia informal cada vez mais dominante, multiplicação de conflitos internos não resolvidos e presença de atores não estatais poderosos, principalmente grupos que integram redes globais de narcoterrorismo. A Argentina deve se preparar para o pior: se seu vizinho colapsar, o impacto não vai parar em sua fronteira.

Sérgio Berensztein Doutor em Ciência Política (University of North Carolina, Chapel Hill) e Licenciado em História (UBA). Obteve um Certificado de Pesquisa em Ciências Sociais no CEDES (Centro de Estudos de Estado e Sociedade). É presidente da Berensztein®, consultoria de análise política e estratégica que fundou em 2014, com uma perspectiva regional e comparativa com base em métodos de pesquisa rigorosos e inovadores, tanto tradicionais (qualitativos e quantitativos) quanto de big data. Nela trabalha com alguns dos principais líderes da Argentina e da região, tanto do setor público quanto do privado, ajudando-os a compreender o mutável ambiente doméstico e global e a tomar decisões em um contexto de alta incerteza. Costuma ministrar conferências e aulas magnas dentro e fora da Argentina, tanto em castelhano quanto em inglês. Também atua como professor da Mestrado em Negócios da Faculdade de Ciências Econômicas da UBA. Desde o início de 2019, foi designado presidente da IPS (International Pres Service) para a América Latina.

Atuou como assessor de instituições de grande envergadura internacional como a Corporación Andina de Fomento (CAF), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e o Banco Mundial (BM).

Foi diretor da Mestrado em Políticas Públicas e Professor de diferentes programas da Universidade Torcuato Di Tella (1997-2017), onde integrou o Conselho de Administração (2012-2014). Também foi professor convidado em instituições acadêmicas do exterior, como as universidades de Duke, Georgetown, Stanford, Princeton, Novo México, FLACSO e CIDE (México) e Salamanca (Espanha).

É autor dos livros “A primeira revolta fiscal da história. A 125 e o conflito com o campo” (junto a María Elisa Peirano, Margen izquierdo, 2020), “Somos todos peronistas?” (El Ateneo 2019), “Por que todos os governos fracassam?” (junto a Marcos Buscaglia, El Ateneo, 2018), “Senhores do Sucesso” (com Alberto Schuster, Edição, 2017), “Os benefícios da liberdade” (junto a Marcos Buscaglia, El Ateneo, 2016), 125 Anos do Banco Nación (Banco Nación, 2016) e “O poder narco” (junto a Eugenio Burzaco, Sudamericana, 2014), entre outros. Além disso, publicou mais de 30 artigos acadêmicos em revistas especializadas e volumes editados.

Atua como apresentador de “Poder e Dinheiro”, pela Americano Media (Miami). Também é apresentador de El Tornillo (Canal de la Ciudad) e co-apresentador do Radioinforme 3, pela Cadena 3 Rosario. Foi co-apresentador dos programas de rádio “Politicamente incorretos” Radio Rivadavia, “Voo de volta” (Milenium) e “Política e pelotas” (Splendid). Também foi co-apresentador de “Emergência Intelectual” (América TV), painelista de «Animais Soltos» (América TV) e colunista da A24. Publica regularmente colunas de opinião no jornal La Nación, TN.com.ar e El Cronista Comercial e anteriormente também nos jornais Perfil e La Gaceta, e é frequentemente consultado pelos principais meios de comunicação do país e do exterior.

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Somos um conjunto de profissionais de diferentes áreas, apaixonados por aprender e compreender o que acontece no mundo e suas consequências, para poder transmitir conhecimento.
Sergio Berensztein, Fabián Calle, Pedro von Eyken, José Daniel Salinardi, junto a um destacado grupo de jornalistas e analistas da América Latina, Estados Unidos e Europa.

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