O pêndulo argentino
Em 1983, o engenheiro Marcelo Diamand publicou “O pêndulo argentino: até quando?”, uma apresentação feita em Nashville, Estados Unidos, que descrevia claramente as bases econômicas do conflito político argentino do século XX. Diamand identificou um comportamento cíclico entre duas correntes político-econômicas: a “popular”, associada ao modelo keynesiano e representativa das aspirações das grandes massas, e a “ortodoxa-liberal”, vinculada ao modelo neoclássico que representa os setores exportadores e financeiros transnacionalizados. Esse pêndulo, segundo Diamand, explicava as recorrentes crises argentinas e seu correlato político.
No entanto, em 2023, as bases econômicas desse conflito começaram a se esgotar, desacomodando os representantes políticos e dificultando sua capacidade de articular coalizões sociais. Os termos do antagonismo mudaram, desamparando ideologicamente ambos os lados da "fenda", e invertendo a ideologia dos setores populares. No espectro “popular”, o peronismo ficou sem promessas nem um ideário nacional claro, enquanto que no lado ortodoxo-liberal, hoje chamado “libertário”, novas políticas econômicas emergiram que romperam com os padrões históricos, dando lugar, em conjunto, ao que hoje podemos chamar de novo pêndulo argentino.
A corrente keynesiana inicia com uma fase expansiva marcada por um boom comercial no setor industrial, um aumento do consumo massivo e melhorias distributivas. No entanto, esse modelo, encarnado pelo kirchnerismo nas últimas décadas, se alinha com o que os economistas Rudiger Dornbusch e Sebastian Edwards descreveram como “populismo macroeconômico” em seu artigo The Macroeconomics of Populism. Segundo essa teoria, os governos populistas priorizam o crescimento a curto prazo por meio de políticas expansivas de gasto público, salários reais elevados e subsídios, ignorando e minimizando as restrições macroeconômicas que provocam desequilíbrio fiscal (gastar mais do que se arrecada), o que leva à dependência da emissão monetária ou do endividamento. Na Argentina, isso se traduziu em problemas estruturais: a capacidade de gerar divisas não acompanhou o aumento das transações econômicas, desencadeando inflação, a restrição à divisa (cepo) e uma interrupção do progresso material de amplos setores da população, levando ao estagnação econômica.
Por outro lado, a corrente ortodoxa-liberal, que historicamente chegou ao poder após as crises de legitimidade do modelo keynesiano, se caracteriza por uma retórica eficientista e pro-mercado, focada em gerar confiança para mobilizar o setor privado e atrair capitais externos que aliviem os problemas de balança de pagamentos. Essas políticas costumam incluir desvalorizações para reduzir importações por meio de recessões, restrição monetária, aumentos de taxas de juros, quedas de salários reais e ajustes do gasto público. O sucesso parcial desse modelo depende da atração de capitais externos, mas historicamente resultou em um esquema insustentável, pois nunca se alcançou, sob esse paradigma, o equilíbrio fiscal. Tradicionalmente, os governos ortodoxos tentaram estabilizar a economia por meio da atração de capitais externos, fixação da taxa de câmbio e financiamento do déficit com dívida externa, um combo que geralmente não terminou bem: na convertibilidade, por exemplo, forçou-se uma taxa de câmbio insustentável que não refletia a posse de divisas, somado a um déficit que multiplicava a dívida necessária. Milei, em contraste, rompeu com esse padrão ao priorizar a sustentabilidade fiscal interna, evitando a emissão e a necessidade de dívida sustentável para financiar um déficit que se acumulasse.
Nunca na história recente a Argentina havia experimentado uma ortodoxia real com liberação do cepo cambial, diminuição da base monetária, equilíbrio fiscal e um Banco Central saneado sem estar em default (ou seja, cumprindo com os pagamentos da dívida). Esse novo enfoque não apenas busca atrair divisas, mas também garantir a sustentabilidade do plano econômico, permitindo pagar a dívida enquanto se fomenta a entrada de capitais, sem gerar em processo nova dívida através do déficit.
A estabilidade econômica de um país depende de um delicado equilíbrio entre receitas e despesas, um princípio básico que nosso país ignorou durante décadas. Segundo um estudo do Instituto Argentino de Análise Fiscal (IARAF), em 28 dos últimos 35 anos, o gasto público superou as receitas, gerando um déficit fiscal estrutural que tem sido o germem de inúmeras crises econômicas. Esse desequilíbrio foi historicamente financiado com dívida, emissão monetária e medidas de emergência que depois se tornaram permanentes, como o Imposto ao Cheque ou as retenções, que acabam afetando a totalidade da economia.
Durante os governos kirchneristas, a dívida externa e interna cresceu impulsionada pelo déficit, especialmente entre 2003 e 2015, e depois durante a gestão de Alberto Fernández (2019-2023). Um exemplo paradigmático é o pagamento de 9.810 milhões de dólares ao FMI em 2005, celebrado como um ato de soberania, mas que foi acompanhado por uma reestruturação que não resolveu os problemas de fundo. Além disso, a reforma previdenciária impulsionada pelo kirchnerismo, como a estatização das AFJP, aumentou o “bolo” de obrigações fiscais, prometendo benefícios sociais que, em muitos casos, se mostraram pouco sustentáveis. Essas promessas, como pensões por invalidez massivas ou programas sociais sem incentivos ao trabalho, geraram um sistema previdenciário e social insustentável, agravando o déficit fiscal e a pressão sobre as reservas internacionais.
Durante o período de 2015-2019, avançou-se na eliminação do cepo ao mesmo tempo que o déficit persistia (com tendência à diminuição), o que não cortou com o fluxo acumulativo de nova dívida, nem tampouco com uma base monetária limitada que pudesse sufocar uma corrida cambial (ou seja, limitar os pesos para que não houvesse demanda por dólares). Essa corrida aconteceu diante da ameaça eleitoral do kirchnerismo. Não é casualidade que muitos dos atores econômicos daquela época trabalhem hoje no atual governo, aplicando uma receita consolidada, que muitos consideram “mais do mesmo”, mas com várias lições aprendidas.
Diagnósticos opostos: escassez de dólares vs. déficit fiscal
A Libertad Avanza identifica o déficit fiscal como o núcleo dos problemas econômicos da Argentina. O gasto público desenfreado, financiado por emissão monetária, gera inflação, desvalorização cambial e um constante desincentivo ao investimento. Por outro lado, o kirchnerismo, historicamente, diagnosticou o problema principal como uma "escassez de dólares", atribuída a fatores externos como a dependência do comércio internacional ou a especulação financeira. No entanto, isso ignora que, de uma perspectiva lógica, o déficit fiscal é uma variável preexistente e estrutural na economia argentina, que gera inflação, desvalorização cambial e desincentivos ao investimento, todos os quais contribuem para a escassez de dólares. A relação causal é clara: o déficit fiscal gera emissão monetária ou endividamento externo, o que aumenta a inflação e a demanda por dólares, reduz a confiança na moeda local, desincentiva as exportações e esgota as reservas internacionais. Em contrapartida, a escassez de dólares, embora possa ser agravada por fatores externos, é principalmente uma consequência dessas dinâmicas internas.
Podemos resumir as características do modelo econômico kirchnerista no fomento do consumo, os controles de câmbio e preços, controles aduaneiros, regulamentação, emissão, déficit fiscal, estatização de todo benefício social (subsídios, tarifas para energia e transporte, ou até o simbólico “Futebol para Todos”), além da estatização de empresas, dívida pública para financiar déficit e falta de reservas internacionais. Essas políticas refletem um intervencionismo estatal excessivo que perpetuou a estanflacion.
A gestão da inflação é outro ponto de divergência. Durante o kirchnerismo, a inflação foi sistematicamente subestimada por meio da manipulação das estatísticas do INDEC, uma prática que começou em 2007 e foi rejeitada até mesmo por setores próximos ao governo. Alberto Fernández, em uma tentativa de justificar essa situação, chegou a falar de uma "inflação autoconstruída", sugerindo que as expectativas dos agentes econômicos, mais do que as políticas monetárias, eram as responsáveis pelo aumento dos preços. Essa narrativa, no entanto, não conseguiu ocultar o impacto da emissão desenfreada e do déficit fiscal na inflação, que alcançou níveis superiores a 50% ao ano em vários períodos de sua gestão.
Por outro lado, atualmente se propõe um ajuste de choque, fechando a "torneira da emissão" e priorizando o equilíbrio fiscal: quanto mais cédulas em uma economia, com a mesma quantidade de produtos e serviços, mais dinheiro é necessário para cada um. Essa estratégia, implementada desde a posse de Milei em dezembro de 2023, busca atacar a inflação desde sua raiz, reduzindo o gasto público e eliminando subsídios ineficientes. Essa política permitiu uma taxa de câmbio quase flutuante, um Banco Central saneado e um equilíbrio fiscal que não se via há décadas, rompendo com um ciclo de 33 anos dos últimos 96 em que predominaram os limites cambiais.
O kirchnerismo se caracterizou por um forte intervencionismo estatal, com regulações que abrangeram desde controles de preços até a criação de impostos como o da renda financeira, da riqueza ou do luxo, regulação do transporte aéreo com proibição de novas companhias aéreas, rotas e empresas transportadoras, ou proibições à importação de questões absurdas, como maquinário agrícola usado. Essas medidas, embora apresentadas como progressistas, foram criticadas por sua ineficiência e a distorção na progressividade tributária, e seu uso político.
Comércio Internacional
O comércio internacional é outro terreno de disputa. Sob o kirchnerismo, a Argentina se tornou o país mais fechado do Mercosul, e um dos mais fechados do mundo, com tarifas, permissões tipo SIRA e controles aduaneiros que limitaram as exportações. Essa política protecionista quebrou setores chave como o sistema energético e mineral.
O governo atual, por sua vez, busca abrir a economia ao livre comércio, com a meta de ampliar os produtos exportáveis do Mercosul, de 100 para 150 e explorar opções como sair do Mercosul ou reformular seu papel no bloco. Essa mudança de paradigma, respaldada por uma taxa de câmbio competitiva e a eliminação do cepo, visa integrar a Argentina aos mercados globais, um objetivo que historicamente enfrentou resistências políticas e empresariais.
A consolidação de espaços de centro e centro direita, crentes no equilíbrio fiscal, na flutuação do dólar e na abertura ao comércio, gera um cenário nunca antes visto na Argentina, lançando as bases para uma economia normalizada. Por outro lado, o kirchnerismo como matrizes ideológicas e materialmente opostas reflete outro modelo de país irreconciliável: um baseado no livre mercado, na desregulamentação e no equilíbrio fiscal; o outro no intervencionismo, protecionismo e expansão ilimitada do gasto público.
Enquanto no novo pêndulo houver um partido ou movimento com potencial eleitoral que descrê da normalização econômica, o país enfrentará dificuldades para construir um consenso que garanta sustentabilidade e crescimento. O desafio, então, não é apenas escolher um modelo, mas gerar novas maiorias que garantam uma reversão do Pacto de Maio: Bases e Pontos de Partida para a Reconstrução Argentina.
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